sábado, 31 de julho de 2021

DELMIRA, A PARTEIRA DE TODAS!

por: Cleudimar Ferreira

Imagem meramente ilustrativa, sem referência com a personagem

Corta, segue o texto: “... vai moiando os pés no riacho. Que água fresca, nosso Senhor. Vai oiando coisa a grané. Coisas qui, pra mó de vê. O cristão tem que andá a pé”. Estrada de Canindé, até que poderia ter sido inspirada nos áureos anos do milagre da fé franciscana. Um rito conclamado no pé do frontispício da ermida dos Gonçalves, quando tudo era fartura naqueles tempos que seguiam. Para ser mais claro, ainda não havia fechado o ciclo invernoso e, as arribaçãs, nem sonhavam chegar, para catar os minguados grãos de arroz, perdidos entre palhas e a areia, no girau.

Veio o mês dos três santos entre as aberturas das cortinas bordadas que enfeitava as janelas da humilde casebre que acolhia Delmira. Senhora do destino de muitas mulheres, inseparável do seu cachimbo billiard - que para o seu nível de conhecimento sobre as letras, ela nem dava conta ou tinha algum interessa em saber, quanto mais, que marca ela botava na boca. Vivia apenas do básico que tirava da terra de onde veio. Onde servia, de acordo com a natureza que lhes pôs a sina de ser a primeira parteira do lugar. Ofício que exercia e prestava sagradamente para todas as mulheres em trabalho de parto nas cercanias dos Catolés e adjacentes. Bastavam os agoniantes lampejos das parideiras ecoar em qualquer uma daquelas casas, ela já preparava sua rodela de fumo de corte, enfiava parte no seu tragante cachimbo e ficava escorada na porta esperando o espirro de um marido desesperado borrifar na estrada.

Para quem vivia do inesperado, qualquer situação em que se achasse, ela estava sempre preparada para agir. Acontece que na noite naquele dia, havia chovido muito e a irregular estrada que cortava o sertão daquelas pragas, estava encharcada de lamaçal e os riachos que cruzava o trajeto, se mostravam pujantes com aguas correntes límpidas e cristalinas, que batia no umbigo de qualquer cristão que se aventurasse atravessar. Condução em quatros rodas no seu mundo, nos anos cinquenta, ainda não havia e todo translado era feito a pé, a cavalo ou a charrete. Um espelho difuso, repleto de dificuldades, porém adaptado ao costumo e a forma de vida que a realidade daquele tempo oferecia a todos. Mas Delmira não se queixava de nada, pois tinha a convicção que havia nascido com aquele proposito e, se apegava por amor aquele oficio, porque sabia que nos momentos difíceis, podia contar ao seu lado, com a força do sagrado coração de São Francisco

Certo dia, quando estava escorada na saída dupla da sua sala, só com a porta de cima aberta, ela desloucou o cachimbo da boca em direção à forra da porta, para expelir as cinzas do fumo queimado. Por um instante, sentiu um leve desejo de ver como estava à panela de rubacão, que preparava para o jantar no velho fogão de lenha. Foi Quando Delmira teve um forte pressentimento que alguém estava vindo. Premunição ou intuição - seja lá o que fosse que ela sentiu, a sensação era quase parecida com que já havia passado antes e, seja lá o que fosse, estava pronta para encarar. Como sempre fez, se manteve calma e esperou o fungado do cavalo acetinar na estrada para acolher o visitante na sua modesta residência.

Osmiro vinha feito um trupizupe, castigando as patas do cavalo nas poças d´água. Vez por outra escorregava aqui, acolá, trazendo consigo o vento e o destino até esbarrar no pé do peituri da descascada casa de Delmira. Cansado ele e o cavalo, o homem pulou do animal e, ainda teve fôlego para gritar: - Acuda Dona Delmira, minha esposa Esmerilda tá sofrendo muito! E eu acho que é o menino que vai nascer! Calma, Osmiro. Respondeu à parteira. E acrescentou: - Calma, senta aqui nessa cadeira que vou pegar lá dentro uns panos, álcool, água benta e um terço. Não deu tempo nem trocar de roupa. Trouxe o necessário para ajuda no trabalho que ia realizar e quando chegou ao alpendre, Osmiro já estava na montaria esperando a mesma. Quando ela encostou-se ao cavalo e ensaiou uma subida na garupa, Osmiro já devidamente acomodado na sela, pegou o braço de Delmira e a puxou para a traseira do cavalo. Numa ação rápida, virou as rédeas do ofegante animal e mirou em direção à estrada, arribando de vez em direção de sua residência. Trazendo consigo o socorro para jovem mulher, que agonizava na cama, sendo assistida apenas pela mãe e duas irmãs.

Em poucos mais de vinte minutos, o cavalo chegou feito um raio, faiscando o terreiro da residência de Osmiro, trazendo a parteira Delmira. Quando Delmira desce e chegou ao quarto, encontrou numa cama de colchão em palha, aquela mulher quase sentada, em posição de parto, de fisionomia roxeada e os lábios frios, sofrendo as piores contrações de sua vida. Era o primeiro filho que ia nascer, e ela, passava naquele momento por uma experiência única, dolorosa, jamais passada antes. Imediatamente Delmira começou a assistir a mulher, pediu às irmãs que colocasse bastante água do fogo para mornar, pois ia precisar muito, já que achava que a criança estava na posição errada e, talvez desse trabalho para nascer.

Diante do cenário que se revelava na sua frente, a parteira tratou de acalmou Esmerilda que gemia sem parar. Pediu a ela que relaxasse e tivesse mais paciência; que aguentasse; pois era daquele jeito mesmo. Sem perder nem um segundo, Delmira começou a colocar em prática suas experiências na condução de situações iguais aquela, que estava diante dela naquele momento. Pediu que a mulher ficasse de lado com uma das pernas levantada para aumentar as contrações. Sem resultado e sem alteração no quadro da paciente, ela com a ajuda da mãe da gestante, tiraram com dificuldade Esmerilda da cama e a colocou de cocara no chão, com as pernas contraídas para as laterais, numa tentativa de fazer a criança encontrar o caminho mais seguro e rápido, menos doloroso para a mãe. Em vão, estava sendo as diversas tentativas feitas e a criança não nascia.

Sem resultado imediato, o tempo corria e as dores só aumentavam. A fadiga e o cansaço, se juntaram ao suor e começaram a refletir-se no rosto da parteira Delmira. O desgaste físico já se abatia na gestante que perdia resistência e força a cada minuto.  A parteira se dirigiu a as três mulheres que antes da sua chagada assistia Esmerilda e, falou que a partir daquele momento só queria no quarto, com ela, uma das três apenas. Pediu que as irmãs saíssem e que ficasse no recinto apenas a mãe auxiliando durante o seu trabalho.

Seguia o lancinante sofrimento que não era mais só de Esmerilda, mas de todos. Osmiro lá fora, era acolhido pelos amigos da vizinhança. Nos demais cômodos da casa, algumas mulheres beatas, retraídas e isoladas se voluntariavam, solidarizando com a dor da jovem esposa de Osmiro. Apreensivas elas rezavam o terço, clamando a Francisco que ajudasse e acabasse com as agruras daquele parto que não chegava a uma solução. Na residência de cima, Desterro, mulher de Zé Quirino, postou-se no oratório barroco do seu quarto. Em silêncio orava incessante de joelho, pedindo a Nossa Senhora do Bom Parto, que reservasse um final feliz para sua amiga e o filho que passavam por situação difícil, sem solução.

A exaustiva corrente de oração se estendeu noite adentro e, lá no quarto, Delmira e a jovem Esmerilda lutava com todas as forças e santos do lugar, para fazer a criança nascer e acabar aquele parto inadiável. Quando já passava de uma da madrugada, ouve-se um grito rasteiro de uma criança ecoar, rasgando a escuridão da noite no Vale do Balsamo. A correria da vigília e o deslocamento do clarão dos candeeiros pelos cômodos da residência de Osmiro, davam votos de boas vidas ao primeiro filho de Osmiro. Desterro desapegou das suas contas, ignorou a imagem de Francisco e a homilia que seguia, correu até o paiol ande havia guardado o que restou de fogos dos festejo juninos que acabara de passar, pulou no meio do terreiro, queimou o pavio, provocando tiros certeiros em direção ao céu. Iluminando a escuridão da noite, ela gritava espantando os pássaros que dormiam nas copas das árvores: Viva! Nasceu. Ele nasceu! Nasceu!  Chegava o fim de mais uma assistência humanitária, ao natural, da parteira Delmira, considerada a mamãe de todos os filhos das terras dos Catolés e a santa mãe de todas as mulheres em trabalho de parto, por todas aquelas cercanias. Corta! Volta Delmira, pois a estrada está escura e tem um marido a sua espera.

foto (verdadeira) da Parteira Delmira
Acervo: Padre Andrade e Antônio de Timão


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2 comentários:

Unknown disse...

Um deleite de texto que emerge mais da alma, do que da razão de um poeta.
Contar encantando, não é coisa de contador é arte de quem canta quando conta e por isso encanta.

Francisco Cleudimar F. de Lira disse...

Obrigado(a) pelas palavras tão bem colocadas que você proferiu sobre esse texto. Apesar de ser uma ficção, há nele pontos de verdades referente a mim a a minha mãe. Um abraço. Mais uma vez, Obrigado(a).