sábado, 19 de dezembro de 2020

CONVERSAS DE CINE ÉDEN (Minha primeira sessão de cinema)

   MEMÓRIA   

por Cleudimar Ferreira


Tudo parecia novo e festivo, mesmo que ainda não tivesse completado sequer a primeira quinzena de janeiro daquele ano. Porém em se tratando de fase de adaptação, já era o suficiente para recomeçar e fazer novas amizades, mesmo num cenário profuso que aquela rua do bispo me oferecia, muitas vezes estampada a olho nu, nas inúmeras imagens dos tantos garotos de comportamento urbano que a mim se dirigia, numa nítida tentativa de acercamento, procurando de imediato fazer novas amizades.

Até achava que alguns não mereciam confiança. Entretanto, mesmo retraído, acreditava que outros tinha boas intenções e que mesmo minha cultura sendo rural, ariscar uma aproximação com certos comportamentos urbanos era algo necessário e inevitável no decorrer do tempo. Não hesitei e o meu lado tímido, acanhado, deixei de lado. Não desmerecendo os demais, mas a primeira amizade pra valer naquela rua foi com o meu vizinho Ariosvaldo.

Valdo como era chamado por todos, era natural de Curais Novos, Rio Grande do Norte. Gostava de Música, Jovem GuardaCinema e Roberto. E foi através dele que eu entrei pela primeira vez em um cinema - no Cine Teatro Éden, principal cinema de Cajazeiras. Lembro sem nenhum broqueio que certa vez estávamos ouvindo na vitrola da casa dele, "O Inimitável”- LP recém-lançado pelo rei, que seu pai havia acabado de comprar na loja “Raio Discos”, quando ele perguntou se eu já tinha ido ao cinema. Curioso, respondi ao mesmo fazendo uma pergunta. O que é cinema? Ele olhou para mim, exibiu um ligeiro sorriso e não respondeu a minha curiosidade. Ora, eu um adolescente advindo de um ambiente rural, lá sabia o que era cinema.

Por entender que eu ainda não estava por inteiro adaptado às coisas boas da cidade, ele me convidou para no domingo a tarde ia ao Cine Éden assistir um filme, que segundo ele era um dos melhores em exibição no Éden. Aos domingos, à tarde, acontecia as matinês e sempre o cinema lotava. Um momento ideal para se trocar e vender revistas, conhecer outros garotos e garotas e fazer novas amizades. Era tudo que precisava para me adequar aos costumes da vida moderna na cidade e o cinema parecia ser o local favorito para se viver e conhecer as novidades do mundo.

Aproximei-me do meu pai e falei: Papai, eu vou ao cinema com Valdo e outros meninos e quero dinheiro para pagar a entrada. Meu pai virou repentinamente e foi logo perguntando o que era cinema e onde ficava essa coisa. Depois de tentar explicar, mesmo sem saber direito o que era, ele perguntou quanto era a entrada e mandou que eu pegasse o dinheiro na gaveta da bodega. Quando abri aquele dito compartimento, só havia as moedas de centavos. O grosso como se fala popularmente ele havia retirado e colocado debaixo do colchão da cama que ele dormia com minha mãe, justamente do lado onde ele dormia. 

Como a entrada era um cruzeiro e cinquenta centavos, tive que levar esse percentual em moedas de um centavos. Ao chegar à portaria do Cine Éden, a fila estava extensiva, mas em compensação estava andando, graças à agilidade da bilheteria. No momento da compra do ingresso, tirei as quinze moedas do bolço da calça coringa e coloquei no buraco da bilheteria e a mulher que vendia os ingressos olhou para mim e começou a contar as moedas. Quando recebi das mãos da bilheteira o ingresso, a minha ansiedade se misturou com a curiosidade de conhecer o que era o tal cinema que Valdo e aqueles garotos felizes naquela fila exibiam nos seus rostos.

Entrei naquele espaço cheio de cadeiras e um som ambiente tocando músicas da época. Fiquei encantado com o tamanho do ambiente, principalmente com aquele cortinado enorme na nossa frente. Era como se ali, estive escondido alguma coisa que nós não poderíamos ver por enquanto. Passado alguns minutos, senti quando de repente, as luzes começaram aos poucos se apagarem e juntos com elas vários toques diferenciados e sincronizados exauria um som forte no composto ambiente do Cine Éden. Essa reentre me fez ficar tenso, atento, colado na cadeira de madeira do auditório do cinema.

Tudo foi ficando escuro naquela sala de exibição e a espera do que ia acontecer, passou a ser o que eu mais tinha curiosidade. Após o cessar daqueles sinais sonora, eis que de repente um imenso retângulo luminoso, surgiu por traz da enorme cortina que aos poucos, devagarinho, começou a se abrir e exibir imagens que eu nunca havia visto. As imagens em preto e branco, intercaladas, passaram a mostrar fragmentos de filmes por um bom tempo e só parou quando a abertura da Fox surgiu rasgando a tela panorâmica do Cine Éden, com sua marca tridimensional e a belíssima peça sonora de fundo, marcando o inicio do filme em cartaz daquela matinê: “Meu Nome é Pecos” com Robert Woods. Um western italiano dirigido por Maurizio Lucidi em 1967 e um dos filmes mais importantes da carreira do ator Robert Woods.

Após passar duas horas nas dependências do Cine Éden, vi aquela sessão de cinema chagar ao fim e como princípio de tudo, o começo da minha paixão por cinema - bem praticada, vivida poeticamente a partir dos bons filmes que assisti e também com as boas amizades que fiz com parte dos trabalhadores das três salas de exibições que havia em Cajazeiras. A natureza simbiótica que senti quando estava com amigos à espera do inicio da minha primeira sessão de cinema, que eu não imaginava como seria, ficou marcada para sempre como o meu ápice de cinéfilo prematuro. E tudo começou no cinema mais popular que a cidade teve - o Cine Éden.


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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Viuvez no Cangaço e Morte na Política.

por: João Filho De Paula Pessoa


imagem meramente ilustrativa. fonte Internet


Cajazeira era um homem de posses, seu pai era um rico fazendeiro de Poço Redondo/SE, tinham muitas terras e rebanhos, e por conta disto eram constantemente explorados e extorquidos pelas volantes, que lhe pilhavam dinheiro, bens e animais, sob o pretexto da campanha contra o cangaço. Ele era casado, na igreja e no “papel passado” com a jovem e bela Enedina
Certo dia de 1937, quando estava num bar, soube da aproximação de uma volante que se dirigia à sua procura para mais uma extorsão e numa atitude impulsiva e de revolta, pois já se encontrava saturado com aquela situação, se esquivou da iminente extorsão e seguiu sertão adentro a procura do Bando de Lampião para se refugiar, localizando-o e sendo aceito no Cangaço. 
Sua Esposa Enedina, logo após, foi ao encontro de seu marido, juntando-se à ele no cangaço, onde passaram a viver. Enedina era conhecida por sua simpatia e alegria e Cajazeira por sua valentia, educação e bons modos, sendo presenças agradáveis no cangaço. Em 1938, estavam acampados na Grota de Angico, junto com Lampião e bando, quando foram atacados pelas volantes. 
Na fuga, Enedina correu junto com Sila e Dulce, mas foi atingida por uma rajada de metralhadora na cabeça, que a esfacelou jorrando pedaços de miolos em suas companheiras ao lado, que seguiram em fuga. Enedina ficou caída e teve sua cabeça cortada e exposta juntamente com as cabeças de Lampião, Maria Bonita e mais oito cangaceiros, numa exposição macabra de onze cabeças decepadas. 
Cajazeira fugiu e sobreviveu, ficou foragido algum tempo, retornou à sua cidade e casou-se, novamente, com sua cunhada, irmã de Enedina, com quem se mudou para o Rio de Janeiro onde foi bem sucedido no trabalho no ramo da construção civil. Alguns anos depois, no início da década de 50, retornou à sua cidade natal de Poço Redondo/SE e retomou a administração das terras e negócios de seu pai, entrou na política, concorreu à prefeitura por duas vezes como Zé de Julião, se envolveu em brigas e disputas políticas e foi assassinado em 1961 por adversários políticos.

O jovem cangaceiro Cajazeira 

 



fonte
: No tempo de Lampião - Memória do Cangaço. 
https://www.facebook.com/groups/1693285910778043

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Sobre a Professora Lica Dantas, Escreveu Rosilda Cartaxo

por: Rosilda Cartaxo

foto da Profª. Lica Dantas

Seu nome representa uma legenda de dedicação, amor e carinho à causa dos pobres, desvalidos e desamparados. Era filha de Raimundo Dantas de Oliveira e Maria Dantas, nascida em São João do Rio do Peixe (a informação não diz a data).

Ainda jovem resolveu se mudar para Cajazeiras, levando duas sobrinhas para servir-lhe de companhia, morando em uma casa simples, incendiada alguns anos depois.

Toda a sua vida foi de sacrifício e abnegação. Fazia da dor do pobre sua própria dor. Era uma peregrina da paz até na maneira de trajar. Na rua, de vestes humildes (longas) era encontrada, de dia ou de noite, parecendo um anjo, percorrendo as ruas de Cajazeiras, de mãos estendidas implorando ao público ou conduzindo trouxas e bacias com auxílio conseguido para saciar a fome e amenizar o frio nas noites de inverno, daqueles que não tinham o que comer nem onde morar. Era o retrato vivo da ternura e da pureza.

Seu sonho era construir um abrigo para os pobres. Não conseguiu. Sua morte fez a pobreza de Cajazeiras chorar. Deve ter levado n'alma a tristeza de não ver o seu desejo realizado.

Dr. Otacílio Jurema, médico e humanitário da cidade, num rasgo de bondade, convidou-a para trabalhar no seu consultório, onde permaneceu por algum tempo.

A morte leva sem distinção as pessoas. Ela se foi, deixando a imagem de santa e um benemérito trabalho, hoje perpetuado na lembrança e na história de Cajazeiras.

Como reconhecimento, foi fundada em 12 de abril de 1959 (não se tem dados sobre o decreto), em sua homenagem, a Escolinha Profissional Lica Dantas reconhecida de utilidade pública. Até 19 de outubro de 1970 funcionou como Escola de Artesanato, inclusive datilografia. Dada a sua importância, a Escolinha Lica Dantas funcionou durante 11 anos, com diretorias compostas de homens probos que ocupavam cargos de representação social e política na cidade, cuja presidência, pela sequência, foi ocupada pelos comerciantes Donato Braga e Dirceu Marques Galvão; Prefeito Francisco Matias Rolim; empresário Raimundo Ferreira e Dr. Abidiel Rolim, odontólogo e político conceituado na região.

Naquela data - 19 de outubro de 1970 - a Escolinha passou a denominar-se Grupo Escolar Lica Dantas.

Pela sua luta, sua bondade, não poderia deixar de figurar no livro Mulheres do Oeste. Lica não só foi mulher, mais que isso, repito, foi santa, pois será que existe na face da terra perfeição maior que possa marcar a vida com tanta capacidade de amar?”

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fonte: CARTAXO, Rosilda. Mulheres do Oeste, pp. 47/48, Halley S. A. Gráfica e Editora

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Em busca dos cinemas perdidos

por: João Batista de Brito

Hoje, dia 17 de outubro de 2017, tem início a XXI versão do SOCINE, evento de caráter cinematográfico, este ano acontecendo em João Pessoa. Mas não é do SOCINE que quero falar. Antes dele, houve o PRÉ-SOCINE, uma atividade organizada pelos pesquisadores e estudiosos do cinema João Luiz Vieira, André Dib e Talitha Ferraz. 

E que atividade foi esta? Teve o nome de “História de cinemas: exibição, modos de ver, experiências locais e regionais”, mas, de minha parte, eu a chamaria de “Em busca dos cinemas perdidos”. 

Na Sala Aruanda, da UFPB, em formato seminário/oficina, o trio expôs e debateu com os interessados – alunos, professores e demais – questões relativas ao “estudo do espaço de exibição cinematográfica e sua articulação com a fruição fílmica, que implica a experiência pessoal (afetiva e sensorial) e os desdobramentos relativos aos espaços de exibição e interação coletiva em sua diversidade espectatorial.” 

Em outras palavras, deslocou-se o foco da História do Cinema para as histórias dos cinemas. 

A oficina do PRÉ-SOCINE acontecendo…

Hoje em dia, e no mundo todo, a gente sabe, a fruição cinematográfica está limitada aos impessoais cinemas de Shopping, e/ou aos meios caseiros do DVD, Blu-ray ou computadores, e, para a juventude atual, essas parecem ser as formas ´normais´ de ver cinema. 

A oficina do PRÉ-SOCINE deu protagonismo ao passado, quando os cinemas tinham calçadas e endereço e, mais que isso, tinham personalidade, cada um no seu prédio próprio, de arquitetura autônoma. O objetivo, porém, não foi estimular o saudosismo, e sim, propor um posicionamento com relação à situação dessas antigas salas de exibição. 

O que ainda resta desses cinemas antigos? Foram demolidos ou estão em ruinas? Sabe-se ainda onde se situavam? Os seus prédios ainda são reconhecíveis? Estão parcialmente restaurados, mesmo que para outras empresas? Ainda guardam traços arquitetônicos do que foram? Seria possível deles resgatar resquícios de qualquer ordem que seja? 

Sugerindo, entre várias outras iniciativas, a criação de grupos de estudo sobre a temática, a oficina do PRÉ-SOCINE propôs a criação de uma rede de interessados que ficariam ligados, entre outras coisas, para a configuração de um mapa (local, regional ou nacional) dos cinemas extintos. E, naturalmente, que cada um, se dedique à pesquisa sobre os casos mais próximos a si mesmo, espacial ou emocionalmente. 

Uma atitude pode ser o mero registro, fotográfico, fílmico ou de outra ordem; mas, não se descartam as iniciativas de buscar formas de luta para recuperar os prédios recuperáveis, eventualmente, propondo-se a autoridades governamentais a transformação em fundações de cultura, como está no exemplo do Cinema São José, em Campina Grande. Para ilustrar alternativas possíveis, André Dib exibiu dois curtas que trataram da temática: “Cine Pajeú” e “A morte do cinema”. 

O crítico e jornalista André Dib em atuação.

Um bom número de interessados participou intensamente da oficina, e, na parte final, houve espaço para os depoimentos individuais, e então, foi possível ouvir vozes que vinham de Cajazeiras, Patos, Rio Tinto e outras localidades paraibanas, todos querendo juntar-se ao projeto, alguns deles apenas com a vontade de agir, outros, como é o caso dos estudos sobre o cinema de Rio Tinto, com trabalho já iniciado ou realizado. 

Conforme sugerem alguns dos meus escritos publicados, sempre me preocupei com o destino das “ruínas” (título de minha penúltima crônica, aqui veiculada) dos velhos cinemas de João Pessoa que, por ora são ruínas, mas daqui a pouco nem ruínas serão mais. De modo que saí da oficina do PRÉ-SOCINE entusiasmado e certo de que, com o tirocínio de pessoas como João Luiz Vieira, André Dib e Talitha Ferraz, essa nova (novíssima, eu diria) linha de pesquisa na área cinematográfica vai longe e promete frutos mais que interessantes. 

A oficina ocorreu entre os dias 13 e 14 deste mês de outubro, porém, de alguma forma, continua: na próxima quinta-feira, dia 19, ficou acertado que o grupo, e quem mais desejar, vai encontrar-se, às 13:30 horas, no Ponto de Cem Réis – centro de João Pessoa –, para dali dar início a uma excursão pelos locais onde se situavam os cinemas centrais da cidade: Plaza, Rex, Municipal, Brasil, Filipeia, Astória e São Pedro. 

Para os não residentes em João Pessoa, ou para os mais jovens, será uma jornada de mero (re)conhecimento; para os viventes municipais de minha faixa etária será – não posso deixar de confessar – uma peregrinação cheia de dores. Mas irei.

Foto de encerramento da Oficina.



segunda-feira, 23 de novembro de 2020

3º Festival de música da Paraíba já tem 1ª eliminatória marcada

Definida a primeira eliminatória do 3º Festival de Música da Paraíba, que acontecerá no dia 04 de dezembro, às 20 horas. Por medidas de segurança e prevenção devido a Covid-19, o evento terá transmissão ao vivo, on-line pelo Youtube, pelo site funescpbgov e Rádio Tabajara. Segundo a produção do festival, o objetivo e fazer as canções ecoarem do litoral ao sertão! com apresentações de nomes como: Daniel Pina, Wister, Jamila, Chris Maurício e Raab.

Portanto, "Pra cego ver" é título do álbum de fotos com imagens dos intérpretes musicais ao lado do nome da canção selecionada para esta eliminatória. Tela 1: Daniel Pina. Canção selecionada: Fela. Tela 2: Wister. Canção selecionada: Seja. Tela 3: Jamila. Canção selecionada: Saudade de Campina. Tela 4: Chris Maurício. Canção selecionada: Canção da Inspiração. Tela 5: Raab. Canção selecionada: O Meu Nordeste.




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domingo, 22 de novembro de 2020

Passagem marcante de Mário de Andrade por Catolé Do Rocha. Bendito

por Pedro Nunes (UFPB)



O escritor modernista e musicólogo, Mário de Andrade, realizarou duas grandes viagens etnográficas com a finalidade de conhecer e aprender sobre as diferentes culturas e expressões musicais populares do Brasil. 

Em 1927... Empreendeu viagem etnográfica rumo à região NORTE fazendo anotações musicais, fotografando, elaborando crônicas e detalhando minuciosamente os encantos vivenciados em sua viagem-pesquisa. Apesar de ser um homem culto, sempre se posicionava na condição de aprendiz, observador criterioso que seguia na busca de expressões e manifestações culturais de cada localidade onde chegava. 

No final de 1928 e princípio de 1929, a sua segunda e intensa "viagem etnográfica" foi para região NORDESTE. 

Nesse seu mergulho de pesquisador-aprendiz irrequieto... Mário de Andrade deparou-se com as nossas riquezas culturais e, também, revoltou-se com a miséria, a seca e o fluxo migratório do nordeste para região sul do país. 

Em uma de suas crônicas que depois integrou o livro O Turista Aprendiz exclama: “a assombração deste Nordeste é a seca”. 

Nessa época o autor de Macunaíma já era considerado uma das maiores expressões literárias do movimento modernista no Brasil. Aclamado como escritor e estudioso da nossa música popular, Mário de Andrade encara o outro artista popular como ser produtor de cultura, conteúdos e significados. Em seu tempo, preocupou-se com a preservação e o registro dessas nossas manifestações culturais visando o futuro. Preparou a memória para temporalidades então futuras e que ora já são presentes. 

Seu objetivo nessas expedições exploratórias foi conhecer aprender e documentar essa nossa diversidade cultural. As raízes em forma de cantigas, toadas, cocos, aboios, emboladas, cantos de farinhadas, benditos, expressões populares, enfim, preocupou-se em registrar as tradições culturais de cada localidade visitada. 

Em janeiro de 1929, Mário de Andrade intencionalmente adentrou na cidade de Catolé Do Rocha - PB vindo assustado outras cidades do Rio Grande do Norte por onde tinha passado Lampião com o seu bando de cangaceiros. Mário de Andrade relata o seguinte: 

"Afinal entramos em Catolé do Rocha, com procissão do orago, rojões, gente bêbada e mendigos. Mas a cidade está desfalcada. Cerca de 1.100 famílias da zona foram pra S. Paulo. Vam’bora pro sul! Este refrão vai me perseguindo com amargura. “E só se fala agora em ir pra S. Paulo” acrescentou o informante...” (Diário Nacional, 28 fev., 1929). 

Aqui na cidade das rochas e da família Rocha... Mário de Andrade sofreu e se comoveu com os pequenos detalhes da cidade, Igreja Matriz, a beleza do atual Monte Tambor e a curiosidade das pessoas. 

Fez um registro magnífico dessa cidade “desfalcada” pela miséria. O escritor-pesquisador destacou o canto de uma pedinte que transmitia “uma dor magnífica, mesquinha, triste mesmo”. 

A cena real descrita por Mário era a de uma menina aleijada, em um carrinho de mão, acompanhada de uma anciã pedindo moedas, repetindo um bendito melodioso. Impressionado Mário de Andrade ouviu e apenas cifrou a melodia no dia 20 de janeiro de 1929. O canto dizia o seguinte: “Deus lhe pague a santa esmola/Deus lhe leve no andor/Acompanhado de anjo/Acirculado de flor”. (Diário Nacional: 1929) 

Mário de Andrade além de escritor e pianista também atuou como professor de conservatório musical. Em 1938, quando dirigia o Departamento de Cultura de São Paulo, encaminhou a Missão de Pesquisas Folclóricas para documentar as manifestações culturais que havia anotado meticulosamente em seus diários de viagens e vivências no NORDESTE. 

Outro detalhe é que por ocasião da vinda do linguista norte americano Lorenzo Turner, em 1940, ao Rio de Janeiro, Mário de Andrade atendeu pedido e resolveu cantar/gravar o BENDITO que ouvira em Catolé do Rocha no ano de 1929. 

Esse registro sonoro foi redescoberto por pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na Universidade de Indiana nos Estados Unidos, em 2015. Esse rico acervo com outras canções coletadas na época... Vem possibilitando a realização de uma série pesquisas e estudos principalmente na área de etnomusicologia, história e música popular brasileira. 

Por fim, Mário de Andrade em 1939 fez uma breve descrição poética, em forma de artigo, no Jornal O Estado de São Paulo sobre a sua chegada em Catolé do Rocha, isso dez anos antes da publicação. O trecho diz o seguinte: 

"Era um domingo e na igrejinha branca, admirável pela harmonia da sua fachada sem torres, a procissão entrava. O céu estava negro de nuvens que não se resolviam a chover sobre a terra, e apenas do lado do poente, uma nesga de céu limpo deixava uns últimos raios de o sol focalizarem, para efeitos da fotografia que encima estas evocações, a igreja e as casas da sua direita, no imenso largo vazio. No alto do morro, uma capelinha votiva também gritava muito espevitadamente o seu branco sem poeira, como um defeito de película fotográfica. E as casas coloridas, encarnadas, azuis, verde, limão, brincavam, numa esperança de alegria, com o ambiente feroz." Percebe-se que a vida do alto sertão paraibano ficou marcada na vida de Mário de Andrade. 

Salve Mário de Andrade! 
Salve Catolé do Rocha com suas tantas Histórias e Memórias!



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Crédito das imagens: Catolé do Rocha, 1929. Foto de Mário de Andrade. Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Escrito publicado no Facebook, em 30 de novembro de 2017.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

NOSSA SENHORA DOS CINÉFILOS ME ACUDA

por: João Batista de Brito


Fui, outro dia, acometido de um delírio que me deixou preocupado com minha saúde mental.

Estava eu em João Pessoa, mas não era a de hoje: entre tarde e noite, era um dia na remota década de cinquenta, e, como o personagem de “Morangos Silvestres”, eu não sabia se, nessa dimensão mágica do passado, estava velho ou se ainda era criança.

Quem me tomou pela mão e me guiou por esse tempo antigo não sei se foi o Virgílio de Dante, ou um dos espíritos de Charles Dickens, ou o anjo Clarence de Frank Capra.

Só sei que, de repente, lá estava eu às portas do Cinema Astória, ali no comecinho da Rua da República, quase vizinho à extinta Fábrica Sanhauá, não muito longe da ponte do mesmo nome, aquela que liga João Pessoa a Bayeux. O filme que estava em cartaz era “Beau Geste”, mas nem comprei ingresso.

Certificado de que eu contemplara a fachada do velho Astória, o meu guia, fosse quem fosse, me fez subir a rua em direção à Praça da Pedra, e lá, dobrou comigo para o lado direito, e seguimos pela São Miguel, até o Cinema São Pedro, que estava exibindo o “Fantasia” de Walt Disney.

Olhamos o cartaz, cubamos o movimento da garotada trocando gibis, e nos mandamos, não em direção ao cemitério - graças a Deus - mas, de volta à Praça da Pedra, de onde continuamos subindo a Rua da República, até o seu final. No encontro desta rua com a General Osório, lá estava o que eu já sabia que ia encontrar - a fachada do Cine Filipéia, onde se destacava o cartaz de “Paixão dos Fortes”, o filme do dia. Pensam que ficamos para a matinê com Henry Fonda? Que nada, o meu guia me arrastou General Osório abaixo, até a Guedes Pereira, em cuja esquina dobramos e fomos ter na calçada do Cine Brasil.

Fiquei louco para ver o filme do dia, “A sombra de uma dúvida”, mas, de novo, o meu guia não permitiu. Demos alguns passos subindo a rua e dobramos à esquerda, agora General Osório acima. Na primeira esquina, o guia nem precisou sinalizar: tomamos a Peregrino de Carvalho e logo estávamos na frente do belo e grandioso Cine Rex que, com algum alarde, exibia naquele dia “Sansão e Dalila”.

Mal deu tempo de me embevecer com, no cartaz, o rosto perfeito de Hedy Lamarr e os peitos estufados de Victor Mature, descemos a Rua Duque de Caxias, viramos à esquerda no Ponto de Cem Réis, e eis-nos diante do não menos grandioso Cine Plaza, onde uma fila enorme se estendia até a calçada do vizinho Pronto Socorro, esperando para ver nada menos que “Os homens preferem as louras”. Com certa impaciência perante o meu demorado deslumbramento com a pose sensual de Marilyn Monroe, o meu guia me puxou pelo braço e seguimos pela Praça 1817.

Cruzamos em diagonal a Praça João Pessoa, tomamos a Rua das Trincheiras e fizemos uma longa caminhada, até encontrarmos a rua Capitão José Pessoa, já no bairro de Jaguaribe; aí dobramos e fomos ter com o Cine Jaguaribe, que entre um seriado e outro, exibia “As minas do rei Salomão”, Deborah Kerr e Stuart Granger no cartaz.

Daí seguimos a Capitão José Pessoa e na próxima esquina, à esquerda, Rua Floriano Peixoto, dobramos e nos dirigimos - precisa dizer? - ao Cine São José, onde o filme do dia era “O manto sagrado”. Tratava-se, como se sabe, do primeiro cinemascope e muita gente esperava para ver a novidade.

Mas nós, não. Retornamos pela mesma Floriano Peixoto, e, sempre em linha reta, cruzamos várias esquinas do bairro de Jaguaribe, até chegar à Av. Primeiro de Maio, onde tomamos a direita e, ladeando o muro alto do imenso e imponente Clube Cabo Branco, atravessamos o calçamento da Vasco da Gama, e nos detivemos no pátio frontal do Cine Teatro Sto Antônio. Tive ânsias de me livrar do meu guia e entrar para ver Gene Kelly e Debbie ReynoldsCantando na chuva”, mas não foi possível. Pela resistência que ofereceu, estava visível em seu rosto impaciente que ainda havia outros cinemas a visitar. Sim, eu sabia que havia pelo menos mais quatro, o Glória e o Bela Vista, em Cruz das Armas, e o Cine Torre e Metrópole, na Torre.

Por que ver tantos cinemas sem entrar para o que interessava? Devo ter me oposto com certa veemência ao incompreensível propósito do guia, e, por certo, foi essa oposição que desfez o meu delírio.

Voltei a mim, nostálgico, me dando conta de que, havia décadas e décadas, nenhum desses cinemas existia mais. Nostálgico e um pouco perplexo, sem ter decifrado a mensagem do meu vago e misterioso guia.

Nos seus delírios, o poeta Dante, o velho Scrooge sovina de Dickens, e George Bailey, o honesto pai de família de Capra, entenderam os seus respectivos guias e lucraram com isso: eu não.

Até agora aguardo que alguma Nossa Senhora dos Cinéfilos me acuda e revele o sentido do meu estranho delírio.

(Em tempo: Esta crônica vai para os amigos João Luiz Vieira e André Dib)



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

XVIII FESERP - FESTIVAL SERTANEJO DE POESIA - PRÊMIO AUGUSTO DOS ANJOS 2020 REGULAMENTO



I – DO EVENTO E SEUS OBJETIVOS:

Art. 1º O XVIII FESERP Festival Sertanejo de Poesia, é uma realização da Acauã Produções Culturais e será realizado na cidade de Aparecida PB, no período de setembro a dezembro de 2020.

Art. 2º Poderão inscrever-se no XVIII FESERP todos os poetas, de qualquer país, independentes de estilo, gênero ou nacionalidade, concorrendo em absoluta igualdade, desde que as obras sejam exclusivas no idioma português e originais.

Art. 3º O XVIII FESERP tem como objetivos:

a) A promoção dos poetas, favorecendo o intercâmbio de ideias na busca de espaços para divulgação dos mesmos;

b) Fomentar a discussão entre artistas e população, criando espaços para manifestações entre educadores e educandos, para um maior crescimento cultural;

c) Descobrir e incentivar novos talentos da poesia;

d) Homenagear o mais expressivo poeta paraibano Augusto dos Anjos concedendo aos vencedores um troféu que traz seu nome.

II - DAS INSCRIÇÕES:

Art. 4º As inscrições serão feitas exclusivamente online, preenchendo o formulário e anexando a poesia em PDF, no link https://forms.gle/cXT69wxNdLcUHVio7 no período de 21 de setembro a 30 de outubro de 2020, não sendo aceitas inscrições presenciais e nem via correios.

Art. 5º Cada poeta poderá inscrever apenas uma poesia com no máximo duas laudas e a mesma não poderá conter o nome do autor apenas o título do trabalho. A identificação do autor ficará exclusiva na ficha de inscrição online.

Art.  O regulamento e maiores informações estarão disponíveis nos sites: www.acaua.org e  www.acauafm87.com.br, pelo e-mail acauaproducoes@gmail.com e pelo whatsapp (83) 98119.8145

Art. 7º Os promotores do evento não se obrigam a devolver o material utilizado para as inscrições, ficando os mesmos na guarda da Comissão Permanente do FESERP para posterior reprodução em livro.

Art. 8º O ato da inscrição implica automaticamente na aceitação integral por parte dos concorrentes dos termos deste regulamento.

III - DO JULGAMENTO:

Art. 9º O Julgamento das obras será feita por uma comissão formada por três jurados de reconhecida experiência comprovada na cultura nacional, que atribuirá notas de 0 a 10 ao material inscrito, no prazo de 20 dias após o término das inscrições, sendo sua decisão soberana, não cabendo qualquer manifestação contrária.

Art. 10 Em caso de empates entre os três primeiros colocados o desempate se dará pela nota do 1º jurado, persistindo o empate os jurados serão contatados para atribuírem novas notas aos referidos trabalhos.

IV - DA PREMIAÇÃO:

Art. 11 A premiação do XVIII FESERP acontecerá online no dia 1º de dezembro de 2020, em evento comemorativo aos 30 anos da Acauã Produções Culturais, com transmissão ao vivo pelas redes sociais no youtube, facebook e instagran.

Art. 12 Os três primeiros colocados no XVIII FESERP, receberão o troféu AUGUSTO DOS ANJOS, confeccionado artesanalmente, um livro ANTOLOGIA POÉTICA DO FESERP volume V e Certificado de participação.

Art. 13 Todos os participantes receberão certificado de participação independente da Classificação.

Art. 14 Os casos omissos a este regulamento serão resolvidos pela Comissão Permanente do FESERP.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O QUE SEI SOBRE O GIMC - Grupo de Integração do Menor na Comunidade

por: Cleudimar Ferreira



Quem lembra do Grupo de Integração do Menor na Comunidade (GIMC). Pois bem, Foi postado pelo poeta e escritor Irismar di Lyrano meu WhatsApp, esse impresso promocional para bolço, em nylon, confeccionado em serigrafia. O mesmo, parece ser de uma das campanhas abraçada pelo GIMC, com o chamamento: "dê um pouco de si em favor do menor", que se tornou depois o principal slogan e principal característica da ação do GIMC nas comunidades periféricas de Cajazeiras, principalmente a do Bairro de Capoeira onde estava instalada a sua sede administrativa e social.

Não tenho muito liberdade para escrever sobre o GIMC, pois não conhecia o seus objetivos mais gerais e profundos em favor das causas sociais do menor cajazeirense. Tudo que eu sei é que o grupo mantinha uma atuação marcante na politica de amparo dos menores mais necessitados da cidade, nos idos anos 70 e na primeira metade da década de 80. Suas atividades nesse campo eram mais extensivas, já que buscava parcerias com associações que iam sendo criadas para atuar em causas de caráter sociais, tais como, as da defesas dos direitos humanos; defesas do meio ambiente e movimentos ecológicos; defesas das minorias étnicas, etc.

Mas o GIMC não se restringiu apenas as ações no campo sociais. O grupo durante o seus momentos áureos anos de atuação, experimentou o gerenciamento em outras áreas especificas, sendo por muitos anos parceiros dos movimentos culturais da cidade de Cajazeiras, abraçando parcerias com eventos importantes nesse setor, como os Festivais de Poesias; Festivais da Canção no Sertão e mais especificamente na área cênica, montando ou apoiando produções de peças teatrais - principalmente as que eram encampadas por grupos de teatro com atuação comunitária.

O GIMC era uma entidade privada em fins lucrativos. Tinha o nome de Irismar di Lyra sua principal referencia e linha de articulação. Irismar, foi presidente fundador do grupo e era nesse período de eficiência e eficácia do GIMC, bastante conhecido e influente no meio social e cultural de Cajazeiras. 

O GIMC foi talvez uma das primeiras organizações criadas no Nordeste com esse perfil, provido de recursos humanos capacitados para atuação na área social, com destaque, a que se destinava a causa do menor carente em situação de risco em Cajazeiras.

Antiga sede do GIMC no Bairro de Capoeiras - Cajazeiras


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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Secretario Damião Cavalcanti convoca trabalhadores da cultura.

O Secretário Estadual da Cultura Damião Ramos Cavalcanti, reforçou o convite para que os trabalhadores da cultura no Estado façam o cadastramento na Lei Aldir Blanc, cujo prazo só vai até o dia 30 deste mês de Setembro. Cada artista cadastrado e contemplado, irá receber a importância de 3 mil reais, divididos em 3 parcelas de R$ 600,00 e mais 4 parcelas de R$ 300,00. Os benefícios que serão destinados aos trabalhadores do setor cultural na Paraíba, estão sob responsabilidade do Governo do Estado.  




domingo, 20 de setembro de 2020

“O calvário da Lei Aldir Blanc”

por Afonso Oliveira
Produtor cultural, escritor e consultor.



As frases da música “Como nossos pais” de Belchior que diz: “Eles venceram e o sinal está fechado prá nós” e “E as aparências não enganam não”, cabem perfeitamente para definir o que considero o calvário para acessar os recursos da conhecida Lei Aldir Blanc. 


A burocracia criada é tão surreal que não encontrei nada parecido em nenhuma lei, decreto ou norma publicada durante a pandemia. Uma ideia que surgiu para socorrer de forma emergencial o setor cultural ficou apenas no papel.


A necessidade de uma Lei Emergencial de Cultura surgiu após o total descaso da então Secretária Regina Duarte com o setor cultural no início da pandemia. Percebendo que nenhuma ação ia ser tomada e sofrendo as consequências da calamidade, a sociedade mobilizou-se e cobrou uma atitude política mais efetiva.


O Congresso Nacional percebeu o problema e tornou-se o termômetro e o protagonista para receber todas as demandas. Vale destacar o empenho dos diversos atores sociais, incluindo alguns deputados, deputadas, senadores e senadoras. Mas se a solução saiu do Congresso, é necessário ser dito, que também foi lá onde começou a criação do calvário. E as aparências não enganam.


Ignorando a experiência de distribuição de recursos emergências via Caixa, congresso e governo politizaram o projeto, no pior contexto da palavra, criando um fluxograma de hierarquias institucionais e interesses estranhos a proposta emergencial da lei. Imediatamente formou-se uma mobilização com interesses políticos e objetivos muito claros: articular o setor cultural em torno de uma pauta de oposição ao governo e a participação de todos os entes federados em ano de eleições municipais. Tudo isso para fazer chegar, pasmem, R$ 2.000,00 (dois mil reais) ou um pouco mais via editais, e R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais de auxílio nas mãos dos trabalhadores do setor cultural. É importante deixar claro que com a obrigação de contrapartida e prestação de contas. Eles venceram e o sinal está fechado pra nós.


Essa politização e burocracia geraram um número incalculável de lives, grupos de aplicativos e um emaranhado de regulamentos, decretos, cadastros, editais e conferências. Tudo legitimado por um coro de muitas vozes, quase como um ritual litúrgico enaltecendo a importância desse processo cruel. Assim criou-se o calvário.


A mobilização social é e sempre será importante, mas criar uma falsa ideia de luta pelo socorro emergencial de pessoas, empresas, espaços culturais, comunidades, terreiros e festas em tempos de pandemia é inadmissível. Não há nada de emergencial nesse processo – decretos de regulamentação nas instâncias federal, estadual e municipal; cadastros que mais parecem uma solicitação de aposentadoria. Enquanto o setor agoniza, assiste-se gestores com seus salários em dia criando ainda mais burocracias, amplificando o calvário.

 

Aldir Blanc em 2016: morto pela Covid-19, cantor e compositor batiza 
lei de emergência | Foto: Leo Martins, Agência O Globo


A Lei Aldir Blanc criou no artigo 2, inciso I, a Renda Básica Emergencial em auxílio às pessoas físicas do setor cultural, com restrições, que mais parecem uma pegadinha. São elas: Pessoas com emprego formal; Pessoas que estão recebendo outros benefícios, como o Seguro-Desemprego, assistenciais ou outros, incluindo auxílio emergencial federal; Pessoas que pertencem à família com renda superior a três salários mínimos (R$ 3.135,00) ou cuja renda mensal por pessoa for maior que meio salário mínimo (R$ 522,50); Pessoas que receberam rendimentos tributáveis acima do valor de R$ 28.559.70 em 2018, de acordo com a declaração do Imposto de Renda. Pessoas que já são beneficiárias do auxílio emergencial previsto na Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.


Com todas essas restrições um número muito pequeno de pessoas têm direito a receber a Renda Básica. Mas a regulamentação do governo federal, com anuência do Fórum dos Secretários e Conselhos de Cultura entregou aos Estados 1,5 bilhão de reais, sendo 1,2 bilhão para pessoas físicas e 300 milhões para editais e prêmios. Vários estados equilibraram essa divisão do bolo, sem perder o desejo sádico das regras, das dificuldades e deixando reinar a rainha da exclusão, a burocracia.


A Cultura Popular está no fim dessa enorme fila desigual. Quem possui mais recursos tecnológicos serão os primeiros atendidos e os que não têm serão enviados para sabe lá onde. Para o deleite da velha política e dos que falam em autonomia nas mesas dos bares descolados.


É a nova-velha tutela com ares pseudo socialista. O teatro dos horrores está pronto com todos os atores em seus devidos papéis, enquanto do lado de fora é a plateia que anseia por fazer arte.


Os editais e seus prêmios contidos na lei Aldir Blanc irão render muitos produtos artísticos a preço de banana. É o Estado e o mito da democracia aproveitando-se da vulnerabilidade financeira de muitos que fazem arte no Brasil. Uma vergonha! Fossemos um país que respeitasse os que fazem arte, esses recursos estariam sendo distribuídos em caráter emergencial de verdade, sem contrapartida, nem prestação de contas. Apenas com CPF ou CNPJ.


A única constatação e alento é saber que tudo isso estão nos deixando mais próximos, mais solidários. Mas não nos enganemos, porque dessa vez Eles estão indo longe demais. Esse calvário será enfrentado e vencido e a cultura por ser a fênix da sociedade, mostrará sua força e dará uma volta por cima para felicidade geral de Nação. Felicidades. Somos todos Macunaímas. 





fonte: https://ricardoantunes.com.br/

sábado, 19 de setembro de 2020

OS CANGACEIROS E CAJAZEIRAS SITIADA

Nadja Claudino

Recorte da capa do livro (romance) "Joana dos Santos", de Ivan Bichara

28 de setembro de 1926, um menino de oito anos de idade se esconde debaixo da cama dos pais. Ele e outras crianças estão acuadas a espera do ataque do bando de cangaceiros liderados por Sabino Gomes (subchefe do bando de Lampião, o temível e famoso Rei do Cangaço). A cidade de Cajazeiras está em suspense à espera dos homens selvagens que viriam do mato, prometendo todo o tipo de destruição, caso não fossem obedecidas as suas exigências.

O sol quente, o calor abafado são alguns dos elementos menos perceptíveis nessa tarde de medo e ansiedade. Os homens testavam as armas, procuravam pontos estratégicos para a defesa da cidade. Na igreja, o bispo defendia sua fé, rezando, pedindo aos céus intervenção para que Nossa Senhora da Piedade protegesse a cidade, os homens, e mesmo os cangaceiros – que fossem eles embora com a graça de Deus. Os cangaceiros nas cercanias da cidade esperavam o melhor momento para atacar; o povo esperava o ataque. A cidade estava sofrendo com a espera angustiada.

O menino embaixo da cama se chamava Ivan Bichara Sobreira, que muitos anos depois escreveu um livro intitulado Carcará, romance que conta essa história acontecida em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, em uma distante tarde do mês de setembro de 1926. O romance mostra uma Cajazeiras orgulhosa da sua história, por ser uma das maiores cidades do sertão, rota de ligação da Paraíba com o Ceará, cidade símbolo da educação. Terra de famílias tradicionais como os Rolim, Albuquerque, Sobreira, Bichara. É essa cidade e são essas famílias que estão sendo ameaçadas por um grupo de cangaceiros, personagens que tanto atemorizavam a região sertaneja da década de 20 até meados de 1940, quando a morte de Corisco baniu o último dos cangaceiros.

Podemos pensar no pavor que acometia todas essas famílias, preocupadas com o destino dos seus homens e suas mulheres, caso caíssem no poder dos cangaceiros. A perversidade dos cangaceiros era altamente propagada. Os estupros de mulheres casadas e até de moças virgens, a castração dos homens, a mutilação da língua dos traidores que falavam demais, os bailes que os cangaceiros promoviam depois da vitória, fazendo as mulheres mais respeitadas da sociedade dançarem nuas na frente dos filhos e dos maridos. Verdade ou invenção eram essas as histórias que corriam de cidade em cidade. E por conta disso os homens que protegiam Cajazeiras estavam em uma guerra de vida ou morte, de glória ou de humilhação.

Ivan Bichara, traduziu esses acontecimentos que marcaram tão profundamente sua infância por meio da literatura. O moço Ivan como muitos rapazes do seu tempo sai de Cajazeiras para terminar seus estudos e se forma na Faculdade de Direito do Recife. Volta à Paraíba e começa uma carreira política promissora, sendo eleito em 1946 para a Assembleia Legislativa, em 1955 se elege deputado federal e, em 1975, é escolhido pela Assembleia Legislativa governador. Ivan Bichara integrou um time seleto de políticos escritores da Paraíba, a exemplo de Ernani Satyro, José Américo de Almeida, Ronaldo Cunha Lima, dentre outros, que assumiram o governo do estado e deram importante contribuição às letras paraibanas.

O romance Carcará toma Cajazeiras como representativa de muitas cidades do interior do nordeste que foram atacadas por bando de cangaceiros. A verdade é que as cidades do interior eram desguarnecidas, os meios de comunicação eram incipientes e não conseguiam tirar do isolamento os lugarejos mais distantes. Esse era um dos fatores por que a maioria das cidades capitulava frente às investidas dos cangaceiros. Mossoró, no Rio Grande do Norte, no ano de 1927, expulsou os cangaceiros da cidade, sendo também uma das primeiras cidades a desafiar o Rei do Cangaço. Esse passado de lutas até hoje é preservado pela população mossoroense, usada como discurso histórico, político e cultural. São museus, memoriais, livros, discursos que formulam a identidade de um povo valente, que não aceitou os invasores. Em Cajazeiras, a expulsão dos cangaceiros não foi explorada dessa maneira, foi silenciada, esquecida e tem no livro de Ivan Bichara uma significativa fonte de pesquisa.

O livro traz personagens representativos do universo sertanejo. São rapazes que na época desejam migrar para os grandes centros e assim poderem dar continuidade aos seus estudos, moças casadoiras, poderosos locais como coronéis, políticos, delegados e também a gente do povo, feirantes, cantadores de viola, que se movimentam e nos prendem nas teias do enredo. O livro de Ivan Bichara é inspirado em um fato real, que ele soube narrar com enorme expressão literária, ligando seus personagens à vida de um Nordeste arcaico, recôndito, lugar de acontecimentos inusitados.

O ataque dos cangaceiros, a ansiedade, o medo das perversidades, tudo isso envolve o leitor do Carcará, fazendo com que ele também se angustie, tome amizade pelos personagens, se importe com sua vida e com o seu destino nas mãos dos cangaceiros. Ivan Bichara integra a vida com a literatura, fazendo a vida pulsar em cada parágrafo. A ansiedade do menino deu subsídios para, juntamente com a técnica literária do homem escritor, gerarem um livro que mesmo empoeirado e esquecido nas estantes das bibliotecas públicas nos remete a um passado que merece ser lembrado.


fonte: https://www.recantodasletras.com.br/