sexta-feira, 14 de março de 2025

porJoão Batista de Brito

Pavilhão do Chá em João Pessoa. imagem do acervo do IBGE.


Estávamos na João Pessoa dos anos quarenta. A família era das mais tradicionais e o casarão ficava no Parque Solon de Lucena, na época área nobre da capital.

Analice fora criada com o zelo esperado: babá, aula de piano, Aliança Francesa, ginásio no Colégio das Lourdinas, secundário na Escola Normal, tudo cabível a uma moça de família abastada, ainda mais filha única.

Foi no tempo da Escola Normal, ali na Praça João Pessoa, que os problemas apareceram. Não se sabe como, Analice conheceu esse rapaz e, em pouco tempo começaram um namoro que, com certeza, se a família soubesse, desaprovaria de chofre. Rapaz pobre, residente no popular bairro de Jaguaribe, Júlio estava longe de ter as credenciais necessárias. Os dois sabiam disso e por isso mesmo se mantinham furtivos, feito dois criminosos.

Poucos conheciam o caso, mas o fato é que o namoro chegou aos ouvidos da família, e daí a pouco, estava peremptoriamente encerrado. Se Júlio sofreu, não se sabe, mas, Analice ficou mal, muito mal. Filha obediente, engoliu o veto, a separação, a dor...

Passou-se o tempo e, com as providências da família, eis que, finalmente, apareceu “o homem certo” para Analice, esta agora já nos seus vinte e um anos de idade. Dez anos mais velho que ela, Constantino era um alto comerciante, proprietário de vários negócios na cidade. Com o reforço da família, o namoro logo virou noivado, que logo virou casamento.

E assim Analice foi se adaptando como podia a essa nova forma de vida, em sua confortável nova residência, uma das mais elegantes da rua Visconde de Pelotas. Não é que não gostasse de Constantino, mas sentia que seu afeto por ele - um homem bondoso e compreensivo – era diverso do que sentira por Júlio. Havia carinho, sossego, respeito, mas não havia chama. Por isso, toda noite rezava à Virgem Maria para esquecer de vez o passado e aceitar o presente.

Aparentemente a Virgem Maria lhe atendeu a súplica. Já fazia cinco anos de casamento, e tudo caminhava dentro da normalidade esperada. Na condição de esposa e dona de casa, Analice vivia, se não feliz, ao menos tranquila, e, mais importante, em paz com sua consciência.

Essa paz começou a ser ameaçada naquele dia em que decidiu que as roupas de cama e mesa da casa estavam gastas. Conversou com o marido, o qual, rindo do problema, lhe lembrou que as Lojas Medeiros e Cia, ali na subida da Guedes Pereira, eram da família: era só ir lá, escolher e mandar entregar. Nem pagar precisava, completou ele, ainda rindo.

E assim lá foi Analice às Lojas Medeiros e Cia.

Para seu total espanto, quem a atendeu? Sim, ele, Júlio, o mesmo Júlio que, agora que o revia, sabia nunca haver esquecido. Estava mais maduro, porém, formoso como sempre, com sua sensualidade morena, o brilho no olhar, a fala doce e o mesmo sorriso franco. Trêmula e um pouco tonta, Analice desempenhou como pôde o papel de freguesa, e ele, aparentemente muito bem, o papel de atendente. Entre os tecidos mostrados, ela não deixou de notar o anel em sua mão esquerda, visão que não sabia se a acalmava ou se mais a perturbava.

Na noite daquele dia Analice não dormiu. Então seu ex-amor era empregado de seu esposo! O destino estava maldosamente brincando com ela... E a insônia persistiu por noites e noites.

Notando-a abatida, o marido aconselhou-a a divertir-se um pouco. Chamasse a vizinha e amiga Letícia e fosse a um cinema, ou saísse para um sorvete, ou um chá, coisas assim.

Sem convicção, Analice foi com Letícia à matinê do Cine Rex. Finda a sessão, a amiga sugeriu um final de tarde no Pavilhão do Chá, ao que Analice reagiu negativamente, escondendo a lembrança de que aquele fora o local do seu primeiro encontro com Júlio. A amiga insistiu, e por fim, Analice acedeu; afinal, não podia continuar fugindo de lembranças que não valiam a pena lembrar.

Pois essas aprazíveis tardinhas no Pavilhão do Chá se tornaram habituais, o que foi alimentando em Analice a impressão de que o passado poderia ser vencido.

Isso até o dia em que, mais um espanto, ela avistou Júlio na calçada da praça. Como assim? Ocorre que os alegres fregueses do Pavilhão do Chá, recinto aberto, podiam ser vistos pelos passantes, da praça e da rua, inclusive pelos passageiros do bonde que fazia o percurso Ponto de Cem Réis-Jaguaribe, o meio de transporte diário de Júlio.

E de repente Júlio veio vindo em direção a ela. Nervosa, Analice chamou o garçom. Não adiantou: ele aproximou-se, deu boa noite, cumprimentou Letícia com um aceno de cabeça, e em seguida, apertou a mão de Analice, e no aperto de mão, veiculou uma discreta tira de papel, que Analice jogou na bolsa sem ver o que era.

Em casa, a sós no seu quarto, leu. Havia um número de telefone e uma frase escrita: “pelo amor de Deus me ligue.”

Desfazia-se daquele pedaço de papel? Ou fazia o que ele implorava?



domingo, 2 de março de 2025

CONVERSAS DE CINE ÉDEN: O Caçador de Fotogramas

porCleudimar Ferreira

Imagem meramente ilustrativa, editada a partir de uma foto de uma cena do filme: 'Alguém 
me Vigia' de 1979. Em destaque a atriz Lauren Hutton, protagonista do filme
 

No auge daqueles três cinemas, eis que explode um dos momentos contagiantes da minha adolescência. Um intervalo no tempo, em que muitos vivenciaram comigo e, outros que não viveram, passaram mais adiante, também, a se envolver e ser parte desse instante. E o que foi bom, não houve idade marcada ou preestabelecida, pois o interesse naquela diversão, era unânime e, por ser assim, atraia a vontade de todos, independentemente dos anos que tivesse ou da seriedade que aparentava ter.

Quando eu andava pelas ruas de Cajazeiras, facilmente sabia entender o sentido daquela atração quase voraz. Uma febre por aquelas atraentes microimagens, pulsava em quase todas as residências, pois o que eu via nessa eterna urbe, era que uma casa aqui, outra ali, sempre havia um grupo reunido, vislumbrando com ajuda de uma razoável lente artesanal, manipulada, a partir de uma lâmpada comum, com água dentro e um foco de luz solar; uns tais fotogramas de cores e luzes, na parede de algum lugar das suas moradias.

Os inventos variavam de tamanho, qualidade e quantidade. Muitos da meninada dessa época, abusava da criatividade, sempre buscando a perfeição, na melhor confecção daquelas pequenos caixas mágicas, que nos fazia viajar por um mundo de fantasias e sonhos. Colavam os quadrinhos magnéticos, um, depois um; outro, após outro, com ajuda de um durex, formando um improvisado novelo, com imagens dos atores, protagonistas dos filmes de faroeste ou épicos preferivelmente, imitando os verdadeiros rolos de fitas, que chegavam em latões, nas cabines dos cinemas para serem revisados e projetados, durante as sessões a noite nas salas de exibições da cidade.

Não se via naquelas caixinhas de sapatos ou de madeira, a possibilidade de elas serem transformadas em algo concreto, pois não havia, sobretudo, nenhuma ligação com a realidade, porém, apenas, pequenos objetos que lembrava a ilusão do cinema ou as imagens que nele víamos. Imagens referenciadas, por demais amadas, principalmente quando olhávamos projetados na parede de nossas casas, os retratos gigantes de Jonh Weyne, Clenn Ford, Gregory Peck, ou as well-defined beauties em plano aberto, de Claudia Cardinale, Greta Garbo, Sophia Loren e Natalie Wood.

A busca diária por tais fotogramas, aumentava e, as portas dos Cines Éden, Pax e Apolo XI, nos intervalos das exibições, bem como, no período da manhã - momento de limpezas dessas salas ou nos horários da tarde - quando os operadores de projetores, revisavam os rolos de fitas; tinha caráter construtivos, já que era na procura das melhores imagens, que surgia a formação dos nossos melhores bancos de fotogramas e, a meninada da vizinhança, era ávida, não fazia concessão e presava pela qualidade das imagens.

No começo dessa fábula cinematográfica, passamos a andar pelos lixos dos cinemas de Cajazeiras, procurando esses esquecidos fotogramas, descartados das partes dos filmes, que não era adequados para exibição nas grandes telas. Até aquela ocasião, para encontrar essas preciosidades, perdidas ou não nos dispensários dos três cinemas, era necessário chegar na hora que os operadores recolhiam o lixo produzido pela revisão, ou horas depois. Isso, se ninguém chagasse antes. 

Tinha alguns que chegava a fazer plantão nos fundos dos cinemas, tocaiando o momento que o auxiliar de operador descia com o lixo da faxina, para vascular os entulhos, ansiosos na esperança de encontrar uma imagem. Se a procura dessas pequenas janelas, era aparentemente uma tarefa difícil, mais difícil ficava, com o aumento do número de interessados envolvidos na brincadeira de cineminha em casa.

Com a crescente demanda por dessas imagens nas portas dos cinemas, os operadores de projetores, que também eram os responsáveis pelas revisões dos filmes, passaram a fazer esse trabalho e, tudo que era cortado das fitas, iam sendo guardados e vendidos a preços não muito satisfatórios, para muitos garotos que não tinha se quer um centavo no bolço da sua calça coringa e, tudo que precisava comprar, dependia da boa vontade dos pais.

Lembro que certa vez estava sendo exibido no Cine Éden um filme de Faroeste, chamado ‘O Irresistível Forasteiro’, com Glenn Ford. O filme foi gravado em cinemascope e a imagem tinha um colorido perfeito, com uma resolução de fazer inveja aos 4k de hoje. A exibição tomava toda a extensão da tela. Como já tinha assistido no dia da estreia, foi dois dias depois ao Cine Éden com alguns trocados no bolso. Meu propósito, era adquirir alguns fotogramas do filme que mostrasse um plano fechado do ator protagonista, no caso, Glenn Ford.  

Quando cheguei a calçado do cinema, vi que a porta estava fechada, mas a janela da cabine dos projetores, que dava para a Praça João Pessoa, estava aberta. Perguntei com a voz um pouco alterada: tem alguém aí? Ninguém apareceu, ninguém respondeu. Já que esse compartimento do cinema ficava numa espécie de plano superior, em relação ao auditório, pequei uma pedrinha no calçamento da Praça João Pessoa e atirei em direção a janela, fazendo a mesma pergunta feita antes: tem alguém aí? Subitamente, vi um pé e uma mão aparecendo, quase empresados, naquela janela estreita e bastante comprida. Era Manoelzinho Justino, um dos operadores, que no futuro veio ser uma das vítimas fatais do atentado a bomba no Cine Teatro Apolo XI.

Ele apareceu na janela e perguntou o que eu queria. Disse a ele que desejava adquirir alguns fotogramas do filme ‘O Irresistível Forasteiro’. Fitas cujas imagens tivesse atores em plano médio ou fechado. Ele prontamente disse que tinha e perguntou quantas eu queria. Respondi, umas cinco. Ele replicou: É dois cruzeiros. Vi que tinha esse valor, peguei o dinheiro enrolei muna pedrinha com uma liga e, joguei em direção a janela. 

Ele recebeu os cruzeiros, conferiu e falou que ia pegar os fotogramas. Fiquei esperando alguns minutos. De repente, Manoelzinho reapareceu na janela e, jogou em minha direção, um pacotinho envolvido num papel. O passador de filmes encostou a janela e desaparece de mim. Quando olho o conteúdo do pacotinho, os fotogramas vendidos por Manoelzinho, só tinha imagem com cenas de paisagens, ou seja, planos gerais da cidade cenográfica, cowboys pastoreando bois e desfiladeiros.

Tentei no mesmo instante devolver a encomenda adquirida com operador do Éden. Gritei em direção a janela superior do cinema, chamando: Ô Manoelzinho! não são essas as imagens que pedi e nem as que comprei. Clamei com a voz altiva e o ‘cara’ não apareceu. Voltei a, apliquei a técnica de atirar uma pedra na janela da cabine de operação do cinema, mas o funcionário da sala de exibição não deu ouvido, não deu as caras.

E assim voltei com aquelas imagens provocativas, desqualificando o meu caminho em direção a balaústre cega da porta principal das casas pernambucanas. Quanto aos meus fotogramas, fui, como diz no popular, ‘enrolado’ pelo tal Manoelzinho do Cine Éden. Mesmo assim, deu para aproveitar, pois como disse anteriormente, as imagens e o colorido do filme ‘O Irresistível Forasteiro’ eram mágicas, um vislumbre para os olhos de qualquer adolescente que vivia aqueles dias fantásticos, simbolizados via as caixas panorâmicas dos nossos três cinemas.

D  E  I  X  E    O    S  E  U    C O M E N T Á R I O




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