sábado, 27 de maio de 2023

Sordade, meu bem...


por: Mariana Moreira

A música vai, sorrateiramente, emergindo de lugares de memórias. Sutil, vai se encorpando em notas, tons e letras que a ontens. E, espontaneamente, começo a cantarolar: “o meu peão só roda com ponteira. Com ponteirinha rasteirando pelo chão”.

E as lembranças de Zé do Norte se materializam no I Festival de Artes de Cajazeiras, em 1985. A lerdeza do pós-almoço nas sombras dos fícus na entrada do Colégio Diocesano, que abrigava a secretaria do evento, é exorcizada pela presença daquele senhor de andar sertanejo, chapéu de couro na cabeça e um bornal atravessado no peito, bem comum a tantos dos nossos que, na lida agreste da vida, usa para abrigar, sobretudo, o fumo de rolo, a palha de milho e a afiada peixeira que, entre tantas utilidades, serve para picar o fumo, cortar e fechar a palha no prazeroso cigarro.

Escolhido patrono do festival, por ser cajazeirense, Alfredo Ricardo do Nascimento, mas para todos Zé do Norte, chega acompanhado de Raimundo Nonato, então secretario de Cultura do Estado.

As lembranças também ganham dimensão de vida na buliçosa alegria que pulula em nossos olhos, meu, de Gutemberg Cardoso, de Fábia Carolino. Espantoso encanto com aquele homem simples que, apesar do grande intervalo de tempo em que esteve afastado do sertão cajazeirense, fala como se estivéssemos a escutar um dos nossos a prosear sobre visagens e malassombros em tantas bocas de noite enluaradas de minha infância.

À noite, no palco do Teatro Íracles Pires, sua voz embargada pela emoção canta e plenos pulmões: “Olê mulher rendeira, olê mulher rendar”. E a música se faz vida neste sertanejo que escapando de uma “sina histórica” de morte ou degredo, se faz nome e música no sul do país e no mundo, quando compõe a trilha sonora do filme O Cangaceiro.

Em entrevista que me concede para o Jornal A União, na paisagem oásica da Estância Termal do Brejo das Freiras, revela seu lado galanteador, alegre, mas também melancólico, com as ingratidões que diretores e executivos lhes tributaram ao não dar o reconhecimento correto de autoria de parte sua fértil obra musical, mas também literária. Entre risos e prosas rasteiras e grávidas de reminiscências, ele manifesta o desejo de vir morar na Paraíba, mais precisamente, no Sertão, onde queria terminar seus dias e sepultar na terra agreste, mas afetuosa, seu corpo.

Volta para o Rio de Janeiro levando essa esperança, que vai ser adida a mais uma das injustiças que este artista acumula. Alguns anos depois, uma sobrinha cajazeirense que ele conhece durante sua presença no Festival de Arte me procura e me traz notícias suas. Estava vivendo em um abrigo de idosos. Passa-me o telefone do local. A ligação revela um

interminável tempo até que do outro lado da linha uma voz cansada, mas ainda marcadamente contagiada pelo nosso linguajar, me abraça de longe.

E, na sua verve de poeta, se despede como a encerrar essa nossa breve, mas para mim, prazerosa amizade, dizendo: “Mariana, dia desses um conhecido me visitou e te mandei esse recado: - Se você for à Paraíba, dê um pulo em Itabaiana. Depois vá a Cajazeiras e dê um abraço em Mariana”.

Ah! Essa “sordade, meu bem sordade”.



fonte: https://auniao.pb.gov.br/

sexta-feira, 26 de maio de 2023

A Chuva

Foto: PASCOM. Edição e Reprodução Leandro Cardoso

por Cleudimar Ferreira 

Era um final de tarde. Era também uma sexta-feira de muito trabalho, suor derramado naquelas caras empoeiradas, com aparência desfiguradas daquela gente, que quase esvaecida, escavacava a aridez cinzenta da terra magra; minguada de recursos naturais; escassa de água de beber. Abaixo dos chapéus de palha que separava a luz do dia e escuridão sombria da razão, havia apenas uma certeza no rosto de todos: a esperança de que somente a chuva poderia trazer alento e tempos melhores.

Nesse intento, aquela espera abstrata que se revelava entre todos, parecia uma eternidade. Mera ilusão, pois quando olhávamos para sol naquele embaraçado momento, víamos isolado do nascente ao poente, apenas o velho astro do dia a dia, ainda brilhando na imensidão do céu límpido e azulado. Na contramão da natureza morte do lugar, não querendo ser excessivo, os meus olhos dava até para ver bem distante, no infinito mundo, as arribaçãs voando em direção ao Nordeste do Sitio Almas. O bailado das avoantes contemplava todos com belo espetáculo em meio à silhueta de um débil arco-íris que começava a aparecer.

Mas apesar do vagaroso arco-íris que se formava por entre as minúsculas nuvens enfarrapadas do Norte, naquele entardecer, a sua tardia aparição ainda não era o bastante para convencer ninguém ali, que através daquele espectro das suas cores, poderia cair água no sertão. Pois acreditava os sertanejos que habitavam daquele lugar, o arco-íris era um monstro que bebia a água da chuva e não deixava ela cai no chão. Portanto, aquilo visto era um péssimo sinal que poderia trazer desgraça e mais seca para uma região já sofrida, forçadamente habituada a ter que conviver anualmente com sucessivas periodos de estiagens.

Com tudo, o belo cenário armado que transfigurava nos olhos daquela gente humilde, não segurava o ânimo de ninguém e cada um entre tantos que moravam naquela pedaço de chão, duvidava do presente deslumbrante que a natureza ofertava - sinalizando a possibilidade de cair chuva no entardecer que principiava. Para os mais antigos, sinais como aquele não representava nada, pois épocas passadas, aquilo tudo havia acontecido e tudo não passou de um sonho, um capricho da natureza.

Mesmo assim, vivíamos apreensivos. Perseverantes e resolutos, porém contidos numa ansiedade que não tinha tamanho. Presos ao rancor de não aceitar mais aquelas agruras que angustiavam e nos tornavam cada vez mais inconsequentes, frágeis e incapazes. Distante de uma condição de vida que pelo menos nos levasse a levantar as nossas cabeças e olhássemos para o horizonte, acreditando que o futuro não era apenas uma ilusão, mas pelo menos uma possibilidade que todos perseguiam incessantemente, mesmo vivendo uma realidade que nos colocava em frente a um flagelo que rondava nossos lares e que a sua insistência, parecia não ter fim, levando muitos - homens, mulheres e crianças ao desespero e a falta de esperança, descrentes de um destino promissor.

E assim os dias passavam e o silêncio batendo a porta de nossa consciência, insistia em habitar naquele humilde lugar. Nenhum de nós ousava falar ou simplesmente lembrar o que passou no dia anterior; quiçá o que poderia acontecer mais adiante, pois as lembranças eram tantas que se revelavam como um pesadelo que atormentava o sono e o sossego dos que ainda resistiam. Talvez, dos que ainda não haviam fugidos em debandadas, deixando para traz a aliança fincada na terra, que há anos serviu como mãe - um abrigo, o nosso sustento.

Em meio a tudo aquilo, vendo e vivendo naquela situação humilhante, muitas vezes tentei fugir do desânimo que tomava aos poucos o meu corpo frágil. Em vão era o meu esforço, pois o fantasma da seca e toda sua problemática não hesitavam um só instante do seu propósito de afugentar e destruir famílias inteiras. Aquele angustiante problema andava comigo, seja para onde eu fosse. 

Levava no meu peito a dor dos fatos e dos acontecimentos que atingia duramente aquela gente durante os últimos meses. Batia forte nos meus ouvidos, martelava a minha cabeça, doía o meu coração, mexia a todo instante com as minhas emoções a ponto de quase não conseguir me livrar daqueles inquietantes momentos. E como um fugitivo, a única saída possível, encarada, que me ajudava esquecer tudo e que aliviava o meu afogo, era sair de casa à procura de algo que fizesse os dias passarem.

E desertando da minha própria sombra, desaparecia de casa em direção à aridez das capoeiras de algodão, procurando um lugar onde pudesse me esconder dos desencantos da vida, que uma criança embora no desfrutar da vida, já carregava no seu resumido universo infantil. Brincar de armar arapucas, fojos, olhar os passarinhos e as abelhas colhendo néctar dos mussambes, nos lugares onde a água ainda não tinha desaparecido por completo, aos poucos, ia se tornando a minha atividade diária. Contemplar o céu azul - quem sabe não vinha de lá a resposta para todo aquilo que os meus olhos estavam presenciando.

E nessa busca frenética de superar os meus anseios; as minhas dúvidas, tentando me encontrar e, comigo, entender os desafios superados e os que eu via na minha frente. Perguntas, e mais perguntas sem respostas passavam por mim como se fossem reflexos incapazes de serem sentidos. E nesse turbilhão de interrogações, baixei a cabeça como quem quisesse aceitar aquela situação, mas quando abria os olhos me depararava com a realidade nua e crua daquele lugar. 

Foi quando em um instante, me vi diante de uma cena e fiquei parado, observando o meu pai que juntava as sobras da comida servida, os pratos de porcelanas, colheres, caldeirões e conchas de paus, usados durante o almoço por toda aquela gente esfarrapada, que empunhando as enxadas na mão, durante o dia todo, puxava a terra seca, fazendo poeira que impedia a visibilidade de cada um.

Horas antes, todo adjunto de trabalhadores, responsáveis pela limpeza e preparo do roçado, que no seu total era dez homens, já havia sido dispensado. Ouvi o chamado dele dizendo: “Vamos meu filho!” E assim, pegamos os utensílios e outras coisas, e partimos... Partimos, seguindo devagarzinho naquele caminho áspero, seixal, de vegetação esturricada em volta.

Meu pai mandava a todo o momento que eu apressasse o passo, pois segundo ele nuvens densas, carregadas, estavam se formando no “nascente” e algo de diferente estava para acontecer. Precisávamos chegar logo em casa. E assim, com uma enxada nas costas e um saco amarrado no cabo do seu principal instrumento de trabalho, o velho esticava as passadas e eu com as minhas pernas magras e pequenas, tinha que acompanhar o seu ritmo para não ficar para traz. Quando de repente senti que a luz daquela tarde, começavou a perder o seu brilho. Curioso, tirei da cabeça o chapeuzinho de fibras de freijós e olhei para cima, vi que estava ficando escuro. Era um sinal que ia cair chuva naquele lugar inculto, sofrível torrão.

O céu estava ficando escuro sim, e a luz do sol aos poucos dava sinal de enfraquecimento. Era tudo muito bonito e mágico, pois até as aves como as juritis, asas-brancas e os três - potes, entoaram seus cantos nas margens do leito seco do Rio Santo Antônio, anunciando o que estava prestes a acontecer no meu sertão. A chuva havia chegado para a alegria e esperanças de todos que viviam naquele lugar.

Empolgado com aquele cenário, meu pai me agarrou pelo braço e jogou no ombro e envolvido com a enxada e um saco com mantimentos na mão direita, uma roçadeira na outra mão, correu em direção a nossa casa; e no caminho onde passávamos, quando avistávamos uma pessoa, ele gritava: - Olha a chuva! Olha a chuva! Era a chuva mesmo, pois dava para ouvir o barulho do vento forte e os grossos pingos gelados quebrando a vegetação morta de um final de seca e prenuncio de bom inverno. Foi o que vislumbrei e pensei ao ver aquele belo cenário aberto sobre meus olhos.

E corria meu pai e os fartos pingos de chuvas que estava distante se aproximava cada vez mais. E lá íamos nós em direção onde morávamos, quando já estávamos próximo do terreiro da cozinha a chuva bateu nas nossas costas. Entramos em casa já todo molhado, abrimos as janelas e do alpendre, ficamos olhando a chuva caindo, rolando no meio do terreiro e nos baixios que ficava bem logo abaixo de onde morávamos. Foi um resto de tarde e noite adentro de chuva, relâmpagos e trovoadas.

Naquela madrugada do dia seguinte, os relâmpagos e os trovões já não se viam e ouviam com grande intensidade e a chuva era senhora absoluta na escuridão da noite. Eu e minhas duas irmãs, viramos aquele dilúculo chuvoso, envolvidos em nossos cobertores, com os ouvidos abertos, ligados no barulho dos pingos castigando o telhado da vivenda onde residíamos.

Foi uma noite inesquecível para mim. Não acreditava no que estava acontecendo. Quando o dia amanheceu, apressado em ver a luz do sol, meu pai acordou cedo e desceu a ladeira em direção ao rio - sua curiosidade era grande. Mas o que fazia ficar naquele estado de atenção, era uma única coisa, as circunstâncias em que se encontrava a plantação de milho que pendoava, na pequena vazante regada à custa de limitadas cuias d’águas, retiradas das cacimbas sulcadas nas areias mais baixas do seco rio Santo Antônio.

Curioso como sempre foi, ele desceu a ladeira sem direção; quando chegou à roça, foi surpreendido com a imensa enchente do velho rio, que extrapolando o seu leito, invadia toda extensão do milharal que ficava próximo a sua margem, deixando submersa aquela parte baixa de terra que ainda resistia bravamente aquele longo período de escassez de chuva. Era água para todo lugar. Os pequenos açudes e barreiros com suas alegres sangrias rasgavam as ribeirinhas. Os riachos esturricados, embebidos de gravetos e animais mortos, limpavam os seus cursos, levando até o rio os assombrosos restos de vidas e deixando atrás esperanças futuras.

Na sua volta para casa, o meu pai atinadamente olhava o que a chuva tinha provocado em toda área onde passava. Nas encostas e várzeas que acolhia o caminho que conduzia ao terreiro de casa, seus olhos sentiam os efeitos provocados pela aquela noitada de chuva forte.

Os pássaros minguados e desaparecidos de antes, cantavam, surgindo do nada. Aquele cheiro de terra molhada trazia mais fôlego aos corações dilacerados da população daquele lugar. E aos poucos, a vida ultrajada e marcada por meses e meses de secas, voltava à tona em meio ao que todos nós esperávamos - a chuva de volta ao nosso sertão.

Quando ele se aproximou do estuario seco do Riacho do Bálsamo, foi surpreendido pela enorme inundação que alagava todo seu trajeto. Como o seu caminho cortava todo riacho, ele não teve outra saída a não ser atravessa aquele aguaceiro que enchia o arenoso curso daquele largo e pequeno rio. Jogou-se nas águas que iam até a cintura, sentiu a forte correnteza comprimir o seu corpo e as piabas trazidas na enxurrada do açude Zé Dias, nadando em volta.

Não acreditava no que os seus olhos viam, pois a água limpa, cristalina, e os peixinhos nadando, não podia ser um fenômeno natural para uma região acostumada a sofrer as angústias das insistentes secas que dizimavam vidas e castigava o pobre homem do campo.  Aquilo não podia ser real, era um sonho, uma miragem. Um presente de Deus para uma localidade carente, cedente de dignidade e acima de tudo, de vida. 

Antiga residência da família Ferreira no Sítio Catolé (Fuá) Cajazeiras
Foto: Izamario  Andrade

G L O S S Á R I O:
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Agruras: (popular) Desgostos, amarguras, sofrimentos.
Afogo: Angústia, ansiedade, aflição.
Adjunto: Grupo de pessoas reunidas, preparadas para executar uma tarefa
Dilúculo: As primeiras luzes do nascer do sol, amanhecer.
Esturricada: (popular) Tostada, queimada, consequência de algo que ficou muito tempo ao sol.
Enxurrada: Grande volume d’água que corre com força, resultante de uma chuva forte.
Enxadas: Instrumento de trabalho do trabalhador do rural, usado para limpar o mato nas roças.
Freijós: Árvore nativa de grande porte, conhecida como pau-de-jangada ou chapéu-de-sol.
Mussambês: Tipo de planta aromática encontrada nas margens dos rios do Nordeste, utilizada no preparo de chás.
Seixal: Concentração de pedras polidas, arredondadas de tamanho variável, encontrada em rios.
Alpendre: Tipo de cobertura aberta, apoiada em colunas, comum nos casarões do Nordeste.


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domingo, 21 de maio de 2023

Dama do teatro, Íracles Brocos Pires vence a ação do tempo e permanece na história de Cajazeiras

por: Nalim Tavares 
 

   Ilustração: Tônio

Algumas pessoas vencem a ação do tempo e permanecem na história de um lugar. A memória de Íracles Brocos Pires, por exemplo, está eternizada assim como o seu nome, gravado na fachada do principal teatro de Cajazeiras - o melhor lugar para homenagear a mulher conhecida por muitos como a “Dama do Teatro no Sertão da Paraíba”.

Carinhosamente apelidada de Dona Ica, Íracles Pires foi teatróloga, escritora, radialista, jornalista e professora, formada em Teatro pela Faculdade de Belas Artes do Rio de Janeiro. Ela participou de maneira atuante dos movimentos culturais do Sertão paraibano, até março de 1979, quando morreu em um acidente automobilístico, aos 46 anos, em Jequié, na Bahia.

Natural de Cajazeiras, Ica era descendente da família Matos Rolim, uma das mais antigas da cidade. Em 1953, ela se casou com Waldemar Pires Ferreira, com quem teve dois filhos – a arquiteta Jeanne Brocos Pires e o engenheiro mecânico e advogado Saulo Péricles Brocos Pires Ferreira, conhecido como Pepé.

Para Saulo, Íracles era “uma mulher dinâmica, de liderança notável. Tudo o que ela podia fazer pela cidade, pela comunidade, ela fazia e engajava, estava à frente”. Pepé conviveu com Íracles por 23 anos desde o seu nascimento, e conta que foram muitas as vezes em que viu a mãe fazer a diferença.

De Íracles, Pepé guarda muitas histórias. Entre as décadas de 1950 e 1960, Cajazeiras viveu um momento de intensa atividade cultural, com o Clube 1° de Maio e o Cajazeiras Tênis Clube, onde as primeiras companhias de teatro locais começaram a se apresentar. Havia, também, o Teatro de Amadores de Cajazeiras (TAC), fundado em 1953, contando com a incontestável liderança de Ica.

Ao longo de sua carreira no teatro, Íracles montou espetáculos como ‘O Auto da Compadecida’, ‘O Noviço’, ‘Dona Xepa’, ‘Afilhada de Nossa Senhora da Conceição’, ‘O Piquenique do Tigre’, ‘A Dama do Camarote’ e ‘Fui eu… Mas não espalhe’. Para além dos palcos, ela gostava de organizar festas juninas para toda a comunidade, festas de debutantes e outras datas comemorativas do calendário da cidade. Ela, inclusive, ajudou a organizar as celebrações do Centenário de Cajazeiras, em 1963.

Íracles gostava de adquirir conhecimento e formar as próprias opiniões. Leitora ávida, daquelas que fazem múltiplas leituras ao mesmo tempo, ela tinha um senso crítico afiado e adorava conversar. Segundo Pepé, uma das coisas que ela mais gostava de fazer era o programa de rádio ‘Mini Discoteca Dinamite’, que foi um sucesso de audiência não só em Cajazeiras, mas na Paraíba. No programa, Ica externava seu ponto de vista e fazia uma série de comentários sobre a política paraibana e, principalmente, cajazeirense.

Ica e Dr. Waldemar (esposo) foto: acervo da família


Amiga do bispo e pioneira no uso da calça comprida

Com certa diversão, Saulo lembra de uma ocasião específica em que percebeu que a mãe era, de fato, uma mulher à frente do seu tempo: durante uma missa, o então bispo diocesano de Cajazeiras, Dom Zacarias Rolim de Moura, teceu um sermão sobre o que seriam “vestes apropriadas para mulheres e homens”, porque Ica, ao lado de outras cajazeirenses, tinha sido uma das primeiras a vestir calça comprida na cidade do interior paraibano. Mas não demorou muito para Íracles, com seu espírito disposto, se tornar amiga do bispo. “Ela se tornou uma pessoa de extrema confiança do bispo Zacarias”, conta Pepé. “Quando ela morreu, era diretora da Rádio Alto Piranhas, fundada pela Diocese de Cajazeiras, em julho de 1966”.

Ica viveu com paixão, se dedicando a tudo o que se propunha a fazer. O poeta e jornalista Linaldo Guedes, membro da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal), não chegou a conhecê-la, mas conhece a história de Íracles “não só porque dá nome ao teatro de Cajazeiras, mas porque ela foi revolucionária para a época”.

“Em plena ditadura militar, depois de casada, com filhos, e criada em família tradicional, Ica ousou, se formou e fez teatro em uma cidade no interior da Paraíba. E brilhou não só como atriz, mas como diretora e cenógrafa”, conta Linaldo. “Ela fazia de tudo no teatro, tamanha a capacidade artística que tinha na veia. Como radialista em Cajazeiras, levantou audiência na região”.

Para Linaldo, Ica era tão diversa quanto a vastidão de interesses que tinha. “Ela era múltipla. Foi uma revolucionária mesmo. Eu coloco Dona Ica, por sua história e pela trajetória, como um dos grandes nomes femininos da história da Paraíba. Íracles Pires ajudou a fazer a história política, social, econômica e cultural da Paraíba”.

Já para os filhos de Íracles, Jeanne e Saulo, a mãe, aos poucos, deixa de ser uma figura física, lembrada por aqueles que conviveram e conversaram com ela, e passa a se tornar uma “figura mitológica”, celebrada por seus atos através de histórias contadas de geração em geração. É assim que eles acreditam que a mãe vai ser lembrada, preservada pela história e pelo tempo como “a Dona Ica, que ajudou a acender o cenário cultural no Sertão paraibano”.


Matéria publicada no jornal impresso A União, dia 05.04.2023




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sexta-feira, 19 de maio de 2023

E agora? Atriz paraibana fala de suas expectativas depois de Travessia

Sala da Notícia - LanComunica

A atriz cajazeirense Dudha Moreira. foto divulgação

“Eu sempre amei atuar, o teatro, sempre soube que eu queria ser atriz. Mesmo seguindo outra profissão por muito tempo, nunca desisti desse sonho e consegui”, afirma Dudha Moreira que interpretou a personagem Cema, dona de um salão de Beleza e do bordão: "- Te contei não, nenê?" que ganhou o público da novela Travessia, exibida às 21h (TV Globo).

A atriz começou a ter essa percepção de que amava atuar ainda muito nova, ela já sabia o que queria e brincava de teatro na escola. Mas, ao sair do município de Cajazeiras, na Paraíba, com 13 anos e ir morar na Capital, em João Pessoa, ainda não pôde seguir seu sonho.

“Quando cheguei a João Pessoa, eu não tive oportunidade de fazer teatro, só de assistir, às vezes, porque minha mãe não tinha condições de pagar meus estudos. Eu tive que trabalhar bancar o meu aprendizado, para depois de 20 anos começar a minha carreira” desabafa a atriz.

A primeira atuação de fato veio com o convite do ator e diretor, Fernando Teixeira, e montaram o espetáculo ‘Morte famme’.  A atriz fez o curso Especialização em Representação Teatral na Universidade Federal da Paraíba e seguiu com alguns participantes a montagem do grupo teatral: “Osfodidário”. Com eles, atuou em peças teatrais como ‘Outubros’, dirigida por João Paulo Soares; ‘A farsa do poder’, de Racine Santos, e ‘Quincas’, com Direção de Daniel Porpino.

Mas para continuar com a atuação, em paralelo seguiu outros rumos, a atriz fez vestibular, se formou em Educação Física, foi professora de ginástica, funcionária pública e não parou aí. A 'mil e uma utilidades', como ela mesma se define, é produtora cultural, preparadora de elenco, já trabalhou com moda, em campanha política e no momento está feliz por acrescentar no currículo a Cema, em horário nobre da TV Globo: “A Cema foi um presente maravilhoso. Ela tem muito de mim, é corajosa e companheira, pau para toda obra! Eu fiz verdadeiras amigas na novela, pessoas que vou levar para a vida toda”, afirma Dudha.

A atriz, que já foi confundida com Mara Marzan, está confirmada na segunda temporada de “Cangaço Novo” (produção da Amazon Prime Vídeo), com previsão de exibição para julho deste ano.

“Na série, a minha personagem, dona Luzia, é o oposto da Cema. Ela é religiosa ferrenha, mãezona, conhece tudo do bando do cangaço e trata todos com muito zelo e carinho. Ela é mãe de um dos cangaceiros, o ator Ênio Cavalcante, que é de Potiguar”, explica à paraibana.

Dudha Moreira contabiliza duas novelas da ‘globo’, no horário nobre, a primeira foi em 2016 (Velho Chico). Ela também pode ser vista em filmes nacionais como os longas-metragens ‘Sol Alegria’, de Tavinho Teixeira; ‘Desvio’, de Arthur Lins; ‘Por trinta dinheiros’, de Vânia Perazzo; e ‘Invólucro’, de Caroline Oliveira. No momento, está "namorando" novos convites que estão chegando: "até fim deste semestre acredito que terei mais novidades para os meus fãs", finaliza.


Dudha Moreira vai gravar série na Amazon Vídeos.



segunda-feira, 8 de maio de 2023

Relato de uma perda

por: Chico Viana 



Nada angustia mais os seres humanos do que a sua condição de mortais. A morte é o desfecho para o qual todos marchamos. Graças a ela criamos religiões, artes e demais recursos da fantasia na vã tentativa de vencê-la. Enquanto não chega, vamos nos virando neste jogo múltiplo e incompreensível chamado vida. Levianos, às vezes chegamos a esquecê-la, até o momento em que ela projeta em nós o hálito sombrio.

Recentemente tive essa experiência ao perder a minha sogra. Já com a idade avançada, ela tinha problemas de hipertensão e artrose em várias articulações, o que a mantinha praticamente imobilizada. Vivia (se é que se podia chamar a isso viver) entre a cama e a mesa, onde fazia sem muito gosto suas refeições. Vez por outra colocavam-na numa cadeira, próximo à calçada, de onde olhava a rua e cumprimentava os conhecidos.

De repente apareceu com falta de ar. Pensou-se que era efeito de uma chuvinha que a surpreendera num daqueles instantes de espairecimento, mas era coisa mais grave, e de nada adiantaram as nebulizações. Seu coração começava a dar sinais de falência e horas depois parou. 

A par da perplexidade e das lágrimas, vieram os ritos burocráticos (deles não escapamos nem na hora da morte). O corpo foi enviado ao IML, onde minha mulher respondeu a uma série de perguntas sobre as circunstâncias do óbito, até ser enfim liberado para o velório.

E então nos vimos naquela minúscula sala, circundando o esquife e cumprimentando os amigos e conhecidos que chegavam. É um lugar estranho para reencontrar parentes que há algum tempo não víamos. Mas, enfim, quem é vivo sempre aparece, enquanto aos mortos cabe perecer. A morte muitas vezes une os que a vida dispersa, talvez por ser um evento de que ninguém se livra. Perante ela nos tornamos humildes e solidários.

Após o ritual religioso e o fechamento do caixão, veio enfim o momento do enterro. Momento grave, de compungida reflexão, pois concretiza a ideia metafórica de que do barro viemos e ao barro vamos retornar. Minha sogra foi colocada onde estão os restos mortais do marido, morto há alguns anos, e houve quem visse nesse “reencontro” o selo de uma convivência marcada pela harmonia conjugal.

Enquanto os funcionários assentavam os blocos de laje sobre o caixão, eu olhava a pequena plateia silenciosa que acompanhava esse trabalho. O que passava pela cabeça de cada um era um mistério tão grande quanto saber o que fazemos aqui para chegar a tal desfecho. Dizem que não é bom pensar nessas coisas, mas como, em momentos iguais a esse, fugir à assustadora percepção do que nos espera? 

Na volta para casa, nada falei que pudesse quebrar o silêncio da minha mulher. Sabia que ali, em meio a lembranças ainda vívidas, começava o lento e doloroso trabalho de esquecimento. Segundo Freud, é falando do morto que se realiza o luto. Mas a perda era recente demais para que nos animássemos a dizer qualquer coisa. Só depois, com o auxílio das palavras, iríamos recompondo-a sem maior sofrimento (e até com alegria) em nossas recordações.

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Chico Viana é professor de língua e literatura brasileira



fonte: acesse https://chviana.blogspot.com/

sexta-feira, 5 de maio de 2023

São João, não tira o pé do chão.

por: Dida Fialho

Foto meramente ilustrativa - retirada da Internet


Câmara Cascudo, profundo estudioso e conhecedor de nossa cultura popular, afirmava que São João, era um santo de alta mora.
Mas, continua o duro Cascudo afirmando que o Santo foi intolerante e intransigente, por isso que dorme tanto durante o dia inteiro nas comemorações a ele dedicadas.
São João chegava a pregar que se descesse a terra, tudo se acabaria em fogo.
‘Vige” Nossa Senhora, já tá de bom tamanho às fogueiras pegando fogo encarnadas de brasas.
Então: imaginem o que o santo dorminhoco acharia hoje em dia, onde as tradições juninas perderam a originalidade e a batida da zabumba, o fole da sanfona com o ritmo agudo do triângulo entrarem para a “modernidade” sem participar dos contratos milionários dos sertanejos da moda.
Com toda essa estrutura acontecendo, constatamos uma triste realidade chagando a ser de certa forma violência contra os artistas locais, chamados de: “artistas da terra”, prata da casa que deixam de brilhar, pois da festa em seu próprio terreiro.
Os artistas descartados sofrem muito com o descaso deixando em vazio, uma vez que a sanfona fica com safena e, fechada sem som a voz do peito se cala.
Será necessário criarmos cotas para atender as demandas para nossos artistas populares participarem de sua própria festa?
Seria solução discutir com os organizadores essa reparação?
Ou deixemos tudo como vem acontecendo com as cartas marcadas em um jogo viciado e excludente?
Não podemos cochilar e nem achar que só em olhar para o céu com o amor, se afirma a beleza de uma festa.
O calor aconchegante da fogueira está estalando no São João, o fogo que arde o milho, a pamonha, a canjica, e todo o arraiá colorido na chita ao som do ciado da chinela no chão e na originalidade saborosa do pé de moleque que é gostoso o ano inteiro.
Restando apenas lembrar ao leitor que sinto saudades dos ranchos de Anchieta Maia, ornamentados nas imagens guardadas em mim e que fizeram tanto sucesso.
Lá está registrada, a música, os estampidos dos fogos, os sabores quentes e frios com seus cheiros genuínos.
Com força cultural, a festa junina envolve os nordestinos construtores deste país continental brasileiro.
Salve o São João e seu carneirinho, que comemoramos dia 24 de junho, dia que também é o aniversário de minha inesquecível, em memória mãe.
Francisca Fialho da Silveira (Duda)

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Dida Fialho é músico, cantor e compositor residente em João Pessoa.



A força do absurdo

 por: Vilma Maciel

Teatro do Absurdo. Foto publicada pelo Centro Cultural Avaré, São Paulo, 2017. 


O absurdo é a antítese da razão. É a negação da lógica, a subversão do senso comum.
Nesse novo tempo de modernidade, da tecnologia, o mundo desafia nossa compreensão e, nos convida a abandonar as certezas que nos confortam.
Modernidade tanto quanto exagerada, o absurdo está presente em todos os lugares, coisas e situações. Na política, economia, cultura, na vida cotidiana e, principalmente no modismo.
É como se a realidade tivesse se desconectado da razão, tal qual uma colagem de fragmentos desconexos.
Nos negócios, o absurdo se manifesta na busca incessante pelos os lucros, não importa os valores éticos e a responsabilidade social, é um caos.
Na política, o absurdo se traduz em promessas vazias, discursos demagogos e corrupção, longe da realidade social. Cada novo governo, uma nova expectativa de mudanças.
Na cultura o absurdo se manifesta em obras que desafiam as convenções e normas éticas.
A arte busca provocar, questionar os valores e ideias dominantes. A Literatura se recusa contar histórias lineares, prefere explorar a outra face mais sombria da alma humana.
O Romantismo foi-se... O amor líquido lidera, o ficar surgiu sacudindo a juventude ‘frenetizando’ a adolescência. O erotismo cresceu, explodiu.
A leitura caminha doente, quase não se lê mais. Os textos encurtaram, a cultura digital tomou o lugar dos livros, é quase uma falência intelectual, a internet tá aí para oferecer tudo pronto.
O absurdo também pode ser uma fonte de humor e criatividade. O riso surge da contradição do inesperado, da nudez provocadora. A imaginação se liberta da lógica, do pudor e inova no surpreendente.
O mundo não é simples, a vida não se reduz mais a fórmula, absurdo ou não, aceitar ou não, o mundo é provocador.
O mundo atual nos convida a olhar para além das aparências e buscar novas formas de compreender a realidade.
O absurdo é um desafio constante, mas também, uma oportunidade de descoberta e de renovação. A chance de experimentar novas ideias, explorar novas possibilidades, aceitar e reinventar o mundo.

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Vilma Maciel é escritora, nasceu em Cajazeiras, mas é radicada na cidade de Juazeiro do Norte/CE.