Com tudo, o belo cenário
armado que transfigurava nos olhos daquela humilde gente,
não segurava o ânimo de ninguém e, cada um entre tantos que moravam naquele
pedaço de chão, duvidava do presente deslumbrante que a natureza ofertava -
sinalizando a possibilidade de cair chuva no entardecer que principiava. Para
os mais antigos, sinais como aquele não representava nada, pois épocas
passadas, aquilo tudo havia acontecido e tudo não passou de um sonho, um
capricho da natureza.
Mesmo assim, vivíamos
apreensivos. Perseverantes e resolutos, porém contidos numa ansiedade que não
tinha tamanho. Ou seja, presos ao rancor de não aceitar mais aquelas agruras
que angustiavam e nos tornavam cada vez mais inconsequentes, frágeis e
incapazes. Distante de uma condição de vida que pelo menos nos levasse a
levantar as nossas cabeças e olhássemos para o horizonte, acreditando que o
futuro não era apenas uma ilusão, mas pelo menos uma possibilidade que todos
perseguiam incessantemente, mesmo vivendo uma realidade que nos colocava em
frente a um revés que
rondava nossos lares e, que a sua insistência, parecia não ter fim, levando
muitos - homens, mulheres e crianças ao desespero e a falta de esperança,
descrentes de um destino promissor.
E assim os dias passavam e o
silêncio batendo a porta de nossa consciência, insistia em habitar naquele
humilde lugar. Nenhum de nós ousava falar ou simplesmente lembrar o que passou
no dia anterior; quiçá o que poderia acontecer mais adiante, pois as lembranças
eram tantas que se revelavam como um pesadelo que atormentava o sono e o
sossego dos que ainda resistiam. Talvez, dos que ainda não havia fugidos em
debandadas, deixando para traz a aliança fincada na terra, que há anos serviu
como mãe - um abrigo, o nosso sustento.
Em meio a tudo aquilo, vendo e
vivendo naquela situação humilhante, muitas vezes tentei fugir do
desânimo que tomava aos poucos o meu corpo frágil. Em vão era o meu esforço,
pois o fantasma da seca e toda sua problemática não hesitavam um só instante do
seu propósito de afugentar e destruir famílias inteiras. Aquele angustiante
problema andava comigo, seja para onde eu fosse.
Levava no meu peito a dor dos
fatos e dos acontecimentos que atingia duramente aquela gente durante os
últimos meses. Batia forte nos meus ouvidos, martelava a minha cabeça, doía o
meu coração, mexia a todo instante com as minhas emoções a ponto de quase não
conseguir me livrar daqueles inquietantes momentos. E como um fugitivo, a única
saída possível, encarada, que me ajudava esquecer tudo e que aliviava o meu
afogo, era sair de casa à procura de algo que fizesse os dias passarem mais
depressa.
E desertando da minha própria
sombra, desaparecia de casa em direção à aridez das capoeiras de algodão,
procurando um lugar onde pudesse me esconder dos desencantos da vida, que uma
criança embora no desfrutar da vida, já carregava no seu resumido universo
infantil. Brincar de armar arapucas, fojos, olhar os passarinhos e as abelhas
colhendo néctar dos mussambês, nos lugares onde a água ainda não tinha
desaparecido por completo, aos poucos, ia se tornando a minha atividade diária.
Contemplar o céu azul - quem sabe não vinha de lá a resposta para todo aquilo
que os meus olhos estavam presenciando.
E nessa busca frenética de
superar os meus anseios; as minhas dúvidas, tentando me encontrar e, comigo,
entender os desafios superados e os que eu via na minha frente. Perguntas, e
mais perguntas sem respostas passavam por mim como se fossem reflexos incapazes
de serem sentidos. E nesse turbilhão de interrogações, baixei a cabeça como
quem quisesse aceitar aquela situação, mas quando abri os olhos me deparei com
a realidade nua e crua daquele lugar.
Foi quando em um instante, me
vi diante de uma cena e, fiquei parado, observando o meu pai que juntava as
sobras da comida servida, os pratos de porcelanas, colheres, caldeirões e
conchas de paus, usados durante o almoço por toda aquela gente esfomeada, que
empunhando as enxadas na mão, durante o dia todo, puxava a terra seca, fazendo
poeira que impedia a visibilidade de cada um.
Horas antes, todo adjunto de
trabalhadores, responsáveis pela limpeza e preparo do roçado, que no seu total
era dez homens, já havia sido dispensado. Ouvi o chamado dele dizendo: “Vamos
meu filho!” E assim, pegamos os utensílios e outras coisas, e partimos...
Partimos, seguindo devagarzinho naquele caminho áspero, seixal, de
vegetação esturricada em volta.
Meu pai mandava a todo o
momento que eu apressasse o passo, pois segundo ele nuvens densas, carregadas,
estavam se formando no “nascente” e algo de diferente estava para acontecer.
Precisávamos chegar logo em casa. E assim, com uma enxada nas costas e um saco
amarrado no cabo do seu principal instrumento de trabalho, o velho esticava as
passadas e eu com as minhas pernas magras e pequenas, tinha que acompanhar o
seu ritmo para não ficar para traz. Quando de repente senti que a luz daquela
tarde, começou a perder o seu brilho. Curioso, tirei da cabeça o chapeuzinho de
fibras de freijós e olhei para cima, vi que estava ficando escuro. Era um sinal
que ia cair chuva naquele sofrível torrão.
Empolgado com aquele cenário,
meu pai me agarrou pelo braço e jogou no ombro e envolvido com a enxada e um
saco com mantimentos na mão direita, uma roçadeira na outra mão, correu em
direção a nossa casa; e no caminho onde passávamos, quando avistávamos uma
pessoa, ele gritava: - Olha a chuva! Olha a chuva! Era a chuva mesmo, pois dava
para ouvir o barulho do vento forte e os grossos pingos gelados quebrando a
vegetação morta de um final de seca e prenuncio de bom inverno. Foi o que
vislumbrei e pensei ao ver aquele belo cenário aberto sobre meus olhos.
E corria meu pai e os fartos
pingos de chuvas que estava distante se aproximava cada vez mais. E lá íamos
nós em direção onde morávamos, quando já estávamos próximo do terreiro da
cozinha a chuva bateu nas nossas costas. Entramos em casa já todo molhado,
abrimos as janelas e do alpendre, ficamos olhando a chuva caindo, rolando no
meio do terreiro e nos baixios que ficava bem logo abaixo de onde morávamos.
Foi um resto de tarde e noite adentro de chuva, relâmpagos e trovoadas.
Naquela madrugada do dia
seguinte, os relâmpagos e os trovões já não se viam e ouviam com grande
intensidade e a chuva era senhora absoluta na escuridão da noite. Eu e minhas
duas irmãs, viramos aquele dilúculo chuvoso, envolvidos em nossos cobertores, com
os ouvidos abertos, ligados no barulho dos pingos castigando o telhado da
vivenda onde residíamos.
Foi uma noite inesquecível
para mim. Não acreditava no que estava acontecendo. Quando o dia amanheceu,
apressado em ver a luz do sol, meu pai acordou cedo e desceu a ladeira em
direção ao rio - sua curiosidade era grande. Mas o que fazia ficar naquele estado
de atenção, era uma única coisa, as circunstâncias em que se encontrava a
plantação de milho que pendoava, na pequena vazante regada à custa de limitadas
cuias d’águas, retiradas das cacimbas sulcadas nas areias mais baixas do seco
rio Santo Antônio.
Curioso como sempre foi, ele
desceu a ladeira sem direção; quando chegou à roça, foi surpreendido com a
imensa enchente do velho rio, que extrapolando o seu leito, invadia toda
extensão do milharal que ficava próximo a sua margem, deixando submersa aquela
parte baixa de terra que ainda resistia bravamente aquele longo período de
escassez de chuva. Era água para todo lugar. Os pequenos açudes e
barreiros com suas alegres sangrias rasgavam as ribeirinhas. Os riachos
esturricados, embebidos de gravetos e animais mortos, limpavam os seus cursos,
levando até o rio os assombrosos restos de vidas e, deixando atrás esperanças
futuras.
Na sua volta para casa, o meu
pai atinadamente olhava o que a chuva tinha provocado em toda área onde
passava. Nas encostas e várzeas que acolhia o caminho que conduzia ao terreiro
de casa, seus olhos sentiam os efeitos provocados pela aquela noitada de chuva
forte.
Os pássaros minguados e
desaparecidos de antes, cantavam, surgindo do nada. Aquele cheiro de terra
molhada trazia mais fôlego aos corações dilacerados da população daquele lugar.
E aos poucos, a vida ultrajada e marcada por meses e meses de secas, voltava à
tona em meio ao que todos nós esperávamos - a chuva de volta ao nosso sertão.
Quando ele se aproximou do estuário seco do Riacho do Bálsamo, foi surpreendido pela enorme inundação que alagava todo seu trajeto. Como o seu caminho cortava todo riacho, ele não teve outra saída a não ser atravessa aquele aguaceiro que enchia o arenoso curso daquele largo e pequeno rio. Jogou-se nas águas que iam até a cintura, sentiu a forte correnteza comprimir o seu corpo e as piabas trazidas na enxurrada do açude Zé Dias, nadando em volta.
Não acreditava no que os seus olhos viam, pois a água limpa, cristalina, e os peixinhos nadando, não podia ser um fenômeno natural para uma região acostumada a sofrer as angústias das insistentes secas que dizimavam vidas e castigava o pobre homem do campo. Aquilo não podia ser real, era um sonho, uma miragem. Um presente de Deus para uma localidade carente, cedente de dignidade e acima de tudo, de vida.
...........................................................................
Agruras (plural): (popular) Desgostos, amarguras, sofrimentos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário