sexta-feira, 26 de maio de 2023

A Chuva

Foto: PASCOM. Edição e Reprodução Leandro Cardoso

por Cleudimar Ferreira 

Era um final de tarde. Era também uma sexta-feira de muito trabalho, suor derramado naquelas caras empoeiradas, com aparência desfiguradas daquela gente, que quase esvaecida, escavacava a aridez cinzenta da terra magra; minguada de recursos naturais; escassa de água de beber. Abaixo dos chapéus de palha que separava a luz do dia e escuridão sombria da razão, havia apenas uma certeza no rosto de todos: a esperança de que somente a chuva poderia trazer alento e tempos melhores.

Nesse intento, aquela espera abstrata que se revelava entre todos, parecia uma eternidade. Mera ilusão, pois quando olhávamos para sol naquele embaraçado momento, víamos isolado do nascente ao poente, apenas o velho astro do dia a dia, ainda brilhando na imensidão do céu límpido e azulado. Na contramão da natureza morte do lugar, não querendo ser excessivo, os meus olhos dava até para ver bem distante, no infinito mundo, as arribaçãs voando em direção ao Nordeste do Sitio Almas. O bailado das avoantes contemplava todos com belo espetáculo em meio à silhueta de um débil arco-íris que começava a aparecer.

Mas apesar do vagaroso arco-íris que se formava por entre as minúsculas nuvens enfarrapadas do Norte, naquele entardecer, a sua tardia aparição ainda não era o bastante para convencer ninguém ali, que através daquele espectro das suas cores, poderia cair água no sertão. Pois acreditava os sertanejos que habitavam daquele lugar, o arco-íris era um monstro que bebia a água da chuva e não deixava ela cai no chão. Portanto, aquilo visto era um péssimo sinal que poderia trazer desgraça e mais seca para uma região já sofrida, forçadamente habituada a ter que conviver anualmente com sucessivas periodos de estiagens.

Com tudo, o belo cenário armado que transfigurava nos olhos daquela gente humilde, não segurava o ânimo de ninguém e cada um entre tantos que moravam naquela pedaço de chão, duvidava do presente deslumbrante que a natureza ofertava - sinalizando a possibilidade de cair chuva no entardecer que principiava. Para os mais antigos, sinais como aquele não representava nada, pois épocas passadas, aquilo tudo havia acontecido e tudo não passou de um sonho, um capricho da natureza.

Mesmo assim, vivíamos apreensivos. Perseverantes e resolutos, porém contidos numa ansiedade que não tinha tamanho. Presos ao rancor de não aceitar mais aquelas agruras que angustiavam e nos tornavam cada vez mais inconsequentes, frágeis e incapazes. Distante de uma condição de vida que pelo menos nos levasse a levantar as nossas cabeças e olhássemos para o horizonte, acreditando que o futuro não era apenas uma ilusão, mas pelo menos uma possibilidade que todos perseguiam incessantemente, mesmo vivendo uma realidade que nos colocava em frente a um flagelo que rondava nossos lares e que a sua insistência, parecia não ter fim, levando muitos - homens, mulheres e crianças ao desespero e a falta de esperança, descrentes de um destino promissor.

E assim os dias passavam e o silêncio batendo a porta de nossa consciência, insistia em habitar naquele humilde lugar. Nenhum de nós ousava falar ou simplesmente lembrar o que passou no dia anterior; quiçá o que poderia acontecer mais adiante, pois as lembranças eram tantas que se revelavam como um pesadelo que atormentava o sono e o sossego dos que ainda resistiam. Talvez, dos que ainda não haviam fugidos em debandadas, deixando para traz a aliança fincada na terra, que há anos serviu como mãe - um abrigo, o nosso sustento.

Em meio a tudo aquilo, vendo e vivendo naquela situação humilhante, muitas vezes tentei fugir do desânimo que tomava aos poucos o meu corpo frágil. Em vão era o meu esforço, pois o fantasma da seca e toda sua problemática não hesitavam um só instante do seu propósito de afugentar e destruir famílias inteiras. Aquele angustiante problema andava comigo, seja para onde eu fosse. 

Levava no meu peito a dor dos fatos e dos acontecimentos que atingia duramente aquela gente durante os últimos meses. Batia forte nos meus ouvidos, martelava a minha cabeça, doía o meu coração, mexia a todo instante com as minhas emoções a ponto de quase não conseguir me livrar daqueles inquietantes momentos. E como um fugitivo, a única saída possível, encarada, que me ajudava esquecer tudo e que aliviava o meu afogo, era sair de casa à procura de algo que fizesse os dias passarem.

E desertando da minha própria sombra, desaparecia de casa em direção à aridez das capoeiras de algodão, procurando um lugar onde pudesse me esconder dos desencantos da vida, que uma criança embora no desfrutar da vida, já carregava no seu resumido universo infantil. Brincar de armar arapucas, fojos, olhar os passarinhos e as abelhas colhendo néctar dos mussambes, nos lugares onde a água ainda não tinha desaparecido por completo, aos poucos, ia se tornando a minha atividade diária. Contemplar o céu azul - quem sabe não vinha de lá a resposta para todo aquilo que os meus olhos estavam presenciando.

E nessa busca frenética de superar os meus anseios; as minhas dúvidas, tentando me encontrar e, comigo, entender os desafios superados e os que eu via na minha frente. Perguntas, e mais perguntas sem respostas passavam por mim como se fossem reflexos incapazes de serem sentidos. E nesse turbilhão de interrogações, baixei a cabeça como quem quisesse aceitar aquela situação, mas quando abria os olhos me depararava com a realidade nua e crua daquele lugar. 

Foi quando em um instante, me vi diante de uma cena e fiquei parado, observando o meu pai que juntava as sobras da comida servida, os pratos de porcelanas, colheres, caldeirões e conchas de paus, usados durante o almoço por toda aquela gente esfarrapada, que empunhando as enxadas na mão, durante o dia todo, puxava a terra seca, fazendo poeira que impedia a visibilidade de cada um.

Horas antes, todo adjunto de trabalhadores, responsáveis pela limpeza e preparo do roçado, que no seu total era dez homens, já havia sido dispensado. Ouvi o chamado dele dizendo: “Vamos meu filho!” E assim, pegamos os utensílios e outras coisas, e partimos... Partimos, seguindo devagarzinho naquele caminho áspero, seixal, de vegetação esturricada em volta.

Meu pai mandava a todo o momento que eu apressasse o passo, pois segundo ele nuvens densas, carregadas, estavam se formando no “nascente” e algo de diferente estava para acontecer. Precisávamos chegar logo em casa. E assim, com uma enxada nas costas e um saco amarrado no cabo do seu principal instrumento de trabalho, o velho esticava as passadas e eu com as minhas pernas magras e pequenas, tinha que acompanhar o seu ritmo para não ficar para traz. Quando de repente senti que a luz daquela tarde, começavou a perder o seu brilho. Curioso, tirei da cabeça o chapeuzinho de fibras de freijós e olhei para cima, vi que estava ficando escuro. Era um sinal que ia cair chuva naquele lugar inculto, sofrível torrão.

O céu estava ficando escuro sim, e a luz do sol aos poucos dava sinal de enfraquecimento. Era tudo muito bonito e mágico, pois até as aves como as juritis, asas-brancas e os três - potes, entoaram seus cantos nas margens do leito seco do Rio Santo Antônio, anunciando o que estava prestes a acontecer no meu sertão. A chuva havia chegado para a alegria e esperanças de todos que viviam naquele lugar.

Empolgado com aquele cenário, meu pai me agarrou pelo braço e jogou no ombro e envolvido com a enxada e um saco com mantimentos na mão direita, uma roçadeira na outra mão, correu em direção a nossa casa; e no caminho onde passávamos, quando avistávamos uma pessoa, ele gritava: - Olha a chuva! Olha a chuva! Era a chuva mesmo, pois dava para ouvir o barulho do vento forte e os grossos pingos gelados quebrando a vegetação morta de um final de seca e prenuncio de bom inverno. Foi o que vislumbrei e pensei ao ver aquele belo cenário aberto sobre meus olhos.

E corria meu pai e os fartos pingos de chuvas que estava distante se aproximava cada vez mais. E lá íamos nós em direção onde morávamos, quando já estávamos próximo do terreiro da cozinha a chuva bateu nas nossas costas. Entramos em casa já todo molhado, abrimos as janelas e do alpendre, ficamos olhando a chuva caindo, rolando no meio do terreiro e nos baixios que ficava bem logo abaixo de onde morávamos. Foi um resto de tarde e noite adentro de chuva, relâmpagos e trovoadas.

Naquela madrugada do dia seguinte, os relâmpagos e os trovões já não se viam e ouviam com grande intensidade e a chuva era senhora absoluta na escuridão da noite. Eu e minhas duas irmãs, viramos aquele dilúculo chuvoso, envolvidos em nossos cobertores, com os ouvidos abertos, ligados no barulho dos pingos castigando o telhado da vivenda onde residíamos.

Foi uma noite inesquecível para mim. Não acreditava no que estava acontecendo. Quando o dia amanheceu, apressado em ver a luz do sol, meu pai acordou cedo e desceu a ladeira em direção ao rio - sua curiosidade era grande. Mas o que fazia ficar naquele estado de atenção, era uma única coisa, as circunstâncias em que se encontrava a plantação de milho que pendoava, na pequena vazante regada à custa de limitadas cuias d’águas, retiradas das cacimbas sulcadas nas areias mais baixas do seco rio Santo Antônio.

Curioso como sempre foi, ele desceu a ladeira sem direção; quando chegou à roça, foi surpreendido com a imensa enchente do velho rio, que extrapolando o seu leito, invadia toda extensão do milharal que ficava próximo a sua margem, deixando submersa aquela parte baixa de terra que ainda resistia bravamente aquele longo período de escassez de chuva. Era água para todo lugar. Os pequenos açudes e barreiros com suas alegres sangrias rasgavam as ribeirinhas. Os riachos esturricados, embebidos de gravetos e animais mortos, limpavam os seus cursos, levando até o rio os assombrosos restos de vidas e deixando atrás esperanças futuras.

Na sua volta para casa, o meu pai atinadamente olhava o que a chuva tinha provocado em toda área onde passava. Nas encostas e várzeas que acolhia o caminho que conduzia ao terreiro de casa, seus olhos sentiam os efeitos provocados pela aquela noitada de chuva forte.

Os pássaros minguados e desaparecidos de antes, cantavam, surgindo do nada. Aquele cheiro de terra molhada trazia mais fôlego aos corações dilacerados da população daquele lugar. E aos poucos, a vida ultrajada e marcada por meses e meses de secas, voltava à tona em meio ao que todos nós esperávamos - a chuva de volta ao nosso sertão.

Quando ele se aproximou do estuario seco do Riacho do Bálsamo, foi surpreendido pela enorme inundação que alagava todo seu trajeto. Como o seu caminho cortava todo riacho, ele não teve outra saída a não ser atravessa aquele aguaceiro que enchia o arenoso curso daquele largo e pequeno rio. Jogou-se nas águas que iam até a cintura, sentiu a forte correnteza comprimir o seu corpo e as piabas trazidas na enxurrada do açude Zé Dias, nadando em volta.

Não acreditava no que os seus olhos viam, pois a água limpa, cristalina, e os peixinhos nadando, não podia ser um fenômeno natural para uma região acostumada a sofrer as angústias das insistentes secas que dizimavam vidas e castigava o pobre homem do campo.  Aquilo não podia ser real, era um sonho, uma miragem. Um presente de Deus para uma localidade carente, cedente de dignidade e acima de tudo, de vida. 

Antiga residência da família Ferreira no Sítio Catolé (Fuá) Cajazeiras
Foto: Izamario  Andrade

G L O S S Á R I O:
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Agruras: (popular) Desgostos, amarguras, sofrimentos.
Afogo: Angústia, ansiedade, aflição.
Adjunto: Grupo de pessoas reunidas, preparadas para executar uma tarefa
Dilúculo: As primeiras luzes do nascer do sol, amanhecer.
Esturricada: (popular) Tostada, queimada, consequência de algo que ficou muito tempo ao sol.
Enxurrada: Grande volume d’água que corre com força, resultante de uma chuva forte.
Enxadas: Instrumento de trabalho do trabalhador do rural, usado para limpar o mato nas roças.
Freijós: Árvore nativa de grande porte, conhecida como pau-de-jangada ou chapéu-de-sol.
Mussambês: Tipo de planta aromática encontrada nas margens dos rios do Nordeste, utilizada no preparo de chás.
Seixal: Concentração de pedras polidas, arredondadas de tamanho variável, encontrada em rios.
Alpendre: Tipo de cobertura aberta, apoiada em colunas, comum nos casarões do Nordeste.


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