domingo, 20 de setembro de 2020

“O calvário da Lei Aldir Blanc”

por Afonso Oliveira
Produtor cultural, escritor e consultor.



As frases da música “Como nossos pais” de Belchior que diz: “Eles venceram e o sinal está fechado prá nós” e “E as aparências não enganam não”, cabem perfeitamente para definir o que considero o calvário para acessar os recursos da conhecida Lei Aldir Blanc. 


A burocracia criada é tão surreal que não encontrei nada parecido em nenhuma lei, decreto ou norma publicada durante a pandemia. Uma ideia que surgiu para socorrer de forma emergencial o setor cultural ficou apenas no papel.


A necessidade de uma Lei Emergencial de Cultura surgiu após o total descaso da então Secretária Regina Duarte com o setor cultural no início da pandemia. Percebendo que nenhuma ação ia ser tomada e sofrendo as consequências da calamidade, a sociedade mobilizou-se e cobrou uma atitude política mais efetiva.


O Congresso Nacional percebeu o problema e tornou-se o termômetro e o protagonista para receber todas as demandas. Vale destacar o empenho dos diversos atores sociais, incluindo alguns deputados, deputadas, senadores e senadoras. Mas se a solução saiu do Congresso, é necessário ser dito, que também foi lá onde começou a criação do calvário. E as aparências não enganam.


Ignorando a experiência de distribuição de recursos emergências via Caixa, congresso e governo politizaram o projeto, no pior contexto da palavra, criando um fluxograma de hierarquias institucionais e interesses estranhos a proposta emergencial da lei. Imediatamente formou-se uma mobilização com interesses políticos e objetivos muito claros: articular o setor cultural em torno de uma pauta de oposição ao governo e a participação de todos os entes federados em ano de eleições municipais. Tudo isso para fazer chegar, pasmem, R$ 2.000,00 (dois mil reais) ou um pouco mais via editais, e R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais de auxílio nas mãos dos trabalhadores do setor cultural. É importante deixar claro que com a obrigação de contrapartida e prestação de contas. Eles venceram e o sinal está fechado pra nós.


Essa politização e burocracia geraram um número incalculável de lives, grupos de aplicativos e um emaranhado de regulamentos, decretos, cadastros, editais e conferências. Tudo legitimado por um coro de muitas vozes, quase como um ritual litúrgico enaltecendo a importância desse processo cruel. Assim criou-se o calvário.


A mobilização social é e sempre será importante, mas criar uma falsa ideia de luta pelo socorro emergencial de pessoas, empresas, espaços culturais, comunidades, terreiros e festas em tempos de pandemia é inadmissível. Não há nada de emergencial nesse processo – decretos de regulamentação nas instâncias federal, estadual e municipal; cadastros que mais parecem uma solicitação de aposentadoria. Enquanto o setor agoniza, assiste-se gestores com seus salários em dia criando ainda mais burocracias, amplificando o calvário.

 

Aldir Blanc em 2016: morto pela Covid-19, cantor e compositor batiza 
lei de emergência | Foto: Leo Martins, Agência O Globo


A Lei Aldir Blanc criou no artigo 2, inciso I, a Renda Básica Emergencial em auxílio às pessoas físicas do setor cultural, com restrições, que mais parecem uma pegadinha. São elas: Pessoas com emprego formal; Pessoas que estão recebendo outros benefícios, como o Seguro-Desemprego, assistenciais ou outros, incluindo auxílio emergencial federal; Pessoas que pertencem à família com renda superior a três salários mínimos (R$ 3.135,00) ou cuja renda mensal por pessoa for maior que meio salário mínimo (R$ 522,50); Pessoas que receberam rendimentos tributáveis acima do valor de R$ 28.559.70 em 2018, de acordo com a declaração do Imposto de Renda. Pessoas que já são beneficiárias do auxílio emergencial previsto na Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020.


Com todas essas restrições um número muito pequeno de pessoas têm direito a receber a Renda Básica. Mas a regulamentação do governo federal, com anuência do Fórum dos Secretários e Conselhos de Cultura entregou aos Estados 1,5 bilhão de reais, sendo 1,2 bilhão para pessoas físicas e 300 milhões para editais e prêmios. Vários estados equilibraram essa divisão do bolo, sem perder o desejo sádico das regras, das dificuldades e deixando reinar a rainha da exclusão, a burocracia.


A Cultura Popular está no fim dessa enorme fila desigual. Quem possui mais recursos tecnológicos serão os primeiros atendidos e os que não têm serão enviados para sabe lá onde. Para o deleite da velha política e dos que falam em autonomia nas mesas dos bares descolados.


É a nova-velha tutela com ares pseudo socialista. O teatro dos horrores está pronto com todos os atores em seus devidos papéis, enquanto do lado de fora é a plateia que anseia por fazer arte.


Os editais e seus prêmios contidos na lei Aldir Blanc irão render muitos produtos artísticos a preço de banana. É o Estado e o mito da democracia aproveitando-se da vulnerabilidade financeira de muitos que fazem arte no Brasil. Uma vergonha! Fossemos um país que respeitasse os que fazem arte, esses recursos estariam sendo distribuídos em caráter emergencial de verdade, sem contrapartida, nem prestação de contas. Apenas com CPF ou CNPJ.


A única constatação e alento é saber que tudo isso estão nos deixando mais próximos, mais solidários. Mas não nos enganemos, porque dessa vez Eles estão indo longe demais. Esse calvário será enfrentado e vencido e a cultura por ser a fênix da sociedade, mostrará sua força e dará uma volta por cima para felicidade geral de Nação. Felicidades. Somos todos Macunaímas. 





fonte: https://ricardoantunes.com.br/

Nenhum comentário: