sábado, 29 de novembro de 2025

CONVERSAS DE CINE ÉDEN: A Luz do Apollo Sobre Dom Zacarias e o Cinema de Cajazeiras

cleudimarferreira

(o jovem) Dom Zacarias Rolim de Moura. Concepção IA Gemini

As boas intenções, aparecem em um determinado lugar, quando se tem por trás pessoas iluminadas, provocadoras de atitudes positivas. A esse respeito, conclama a oralidade, que a história de algumas cidades pode apresentar formas diferentes de nascimento. No caso de Cajazeiras, o que todos sabem é que ela nasceu a partir de uma escola. Essa é a versão oficial. Mas há cidades por aí a fora que suas histórias podem revelar duas versões. Uma, a de que surgiu simplesmente das primeiras alvenarias fincadas no seu chão, que foram erguidas com suas ruas e edificações; a outra vem do pensamento popular, de que simplesmente nasceram com uma luz que um dia as atravessaram, deixando feitiço e brilho intenso nos seus solos.
 
Não sei se Cajazeiras foi tocada por esse romantismo barato. Mas, baseado esse ponto de vista, a cidade teve de fato, o privilégio raro de renascer pela luz que escapava das janelas estreitas de três salas de cinema, mais especificamente, duas, o Cine Teatro Apolo XI e o Cine Teatro Pax, ambos sonhados, erguidos e guardados com o zelo de um pai por seu filho mais querido. Nesse caso, o pai, o sensível Bispo Dom Zacarias Rolim de Moura, um homem que dividia com sabedoria o coração entre o púlpito e o projetor, ou seja, a vocação para o eclesiástico e a paixão pelo cinema. Essa dualidade do bem, o fez um bispo cinéfilo que ousou construir não só igrejas, mas cinemões no centro do sertão paraibano.
 
Algumas pessoas, principalmente as mais próximas, costumava dizer que Dom Zacarias tinha uma alma inquieta - dessas que não cabem só nas obrigações episcopais. Era bispo, sim; disciplinado, sim; dedicado, sim, a fé religiosa; homem de oração, claro. Mas havia nele uma pulsação voraz de menino: o encantamento pelas histórias projetadas nas grandes telas de cinema. Essa atração, talvez viesse de muito longe. De duas cidades do vizinho estado do Ceará; Umari e Iguatu ou de alguma tarde perdida em que ele, então adolescente, viu pela primeira vez o milagre de uma luz tremida transformando-se em rostos, aventuras e paisagens. Seja como for, essa fagulha ficou nele, e ardeu silenciosa até o dia em que se tornou chama.
 
Quando assumiu a diocese de Cajazeiras, muitos sob a ótica da tradição, esperavam dele as obras características de um bispado: escolas, centros educacionais, presença cativa nas festas religiosas, pregações, peregrinações pelas paróquias da diocese e uma destacada participação na vida social da cidade. Tudo isso ele fez. Mas ninguém imaginava que, naquela mente, sempre três passos adiante, germinava a ideia de instalar dois cinemas comerciais, estruturados com ambição dos que haviam na capital, mas fincados no coração de Cajazeiras.
 
Das duas salas instaladas, a sua joia rara, o Cine Teatro Apolo XI - e o nome, por si só, já anunciava que Dom Zacarias não era de pensar pequeno, fazia parte de um complexo de comunicação, de construção arrojada, moderna para os padrões da época, dotado com equipamentos de última geração, que incluía uma emissora de rádio - a Rádio Alto Piranhas e um cinema - o Cine Teatro Apolo XI. 

No caso do Apolo XI, a sala apresentava fachada imponente, cabine de projeção ampla, com ar condicionado gelado como uma noite de inverno no hemisfério sul. Dois projetores enormes, lustrosos, que davam orgulho só de olhar, da melhor marca que havia na época. A sua tela panorâmica se destacava pela amplitude retangular. O auditório espaçoso com camarotes no seu mezanino, lembravam os cines-teatros dos grandes centros.
 
Havia ainda no auditório uma cadeira cativa. A mais vazia de todas as cadeiras lotadas. Aquela cadeira que ninguém ousava ocupar, nem por engano. O cinema podia estar abarrotado, gente sentada até no chão; encostada nas paredes laterais; gente entrando ainda com o tremor da fila - e lá estava ela: livre, esperando o bispo. Era como se o próprio Apolo ficasse em silêncio diante dela, aguardando a autoridade de quem lhe dera o sopro de vida.
 
Os frequentadores do Cine Teatro Apolo XI, todos sabiam que, quando estreava um filme novo, Dom Zacarias vinha certeiro no primeiro dia de exibição. Ele era pontual, vinha ver o filme, como quem cumpre um ritual sagrado. Chegava discreto, mas sua entrada tinha o efeito de apagar murmúrios. Sentava-se no assento proibido e, quando a luz da cabine acendia pela fresta, o cinema inteiro parecia respirar com mais calma.
 
Mas o religioso não vivia só para o seu cinema preferido - o Cine Apolo XI. No outro extremo da cidade, na direção sudoeste, ele criou o Cine Teatro Pax, mais popular, de características ruidoso pela ação da euforia das crianças nas sessões de domingo, mais vivo e frenético com as aventuras de Peter Pan

Instalado no antigo prédio carmelita, o Cine Pax recebia a população cinéfila da zona sul. Os meninos curiosos, os casais apaixonados, os que vinham pela diversão pura. Ali, fora a programação da noite, ele exibia nas matinês de domingo à tarde, filmes de aventuras, faroestes, desenhos da Disney, produções de Mazzaropi, que marcaram a infância de gerações. 

A sala do Pax era menor do que a do Apolo XI, com a cabine projeção apertada, desconfortável, muito quente e abafada. Diferente do Cine Apolo, não havia ar condicionado, apenas um pequeno ventilador ajudava na ventilação dos projetores e dos operadores. Mas o Pax era o point de todos nós e, as suas acomodações, embora improvisadas, adaptadas, sem muito conforto, praticamente não era sentidas pelos seus frequentadores.  
 
O afeiçoado Dom Zacarias conhecia seu público como um dono de circo conhece a alma da plateia. Viajava no ônibus da Viação Gaivota, todo fim de mês a Veneza brasileira - Recife. Chagando lá percorria pacientemente as distribuidoras de filmes da capital pernambucana, observando catálogos; lendo sinopses; escolhendo os filmes que melhor adequasse a programação dos seus cinemas e ao perfil dos seus frequentadores. Depois, assinava os contratos de locação com essas empresas, definindo com cuidado o que Cajazeiras veria nas próximas semanas. Era assim, uma das partes da rotina do nosso bispo cinéfilo.

Dos muitos momentos, que a convite de Cícero Alves, atravessei o corredor silencioso do Palácio Episcopal e cheguei ao gabinete de Dom Zacarias, vi um homem que parecia estar mais centrado nas atividades dos dois cinemas do que nas suas obrigações primarias de líder religioso, responsável pela orientação de seus paroquianos. Esse comportamento se mostrava no instante que estávamos lá, quando chegava no seu birô pessoas da diocese. A atenção às demandas dos cinemas, trazidas por Cícero, o bispo escutava com mais alma, como mais cuidado, olhava com mais interesse e respondia com mais ênfase, porém essa cena não se repetir quando outras questões eram trazidas por representantes do clero. 

No seu tempo, sendo uma fração no mundo seleto dos exibidores, o Bispo não se curvou às modas do mercado cinematográfico. Nesse período, quando o Brasil, por exemplo, mergulhou na era das pornochanchadas, cinemas de norte ao sul do país, apelaram a esse tipo de bilheteria. Ele - firme, silencioso, convicto - recusou. Não por moralismo agressivo ou por conservadorismo provinciano; mas porque acreditava na dignidade do cinema, na força que a sétima arte tinha para educar, instruir e maravilhar pessoas. O que fez Dom Zacarias, segurou com cautela o fantasma da crise que se avizinhava, aguentou até onde pode.
 
Quando viu a coisa piorar de vez, com os filmes pornôs tomando conta das telonas, e assim, quando a onda do pornô engoliu quase todas as salas do país, preferiu fechar suas salas a empurrar de goela abaixo no seu público um tipo de filme que, segundo ele, era o fim dos cinemas e não acrescentava nada aos seus fiéis expectadores
 
Assim, envolvidos nesse ponto de vista, os seus cinemas silenciaram. Não por falência, mas por fidelidade a um princípio. E o que ficou? Ficou a lembrança. Ficou a luz. Ficou o gesto de um homem que, no sertão profundo, tratava a cultura não como lixo, mas que ousou provar que cultura também não era luxo e sim, necessidade. 

As lembranças dos seus cinemas, ficaram no eco das sessões lotadas; da sua cadeira cativa vazia. No cheiro das novas fitas de um novo filme, nas risadas altas nos desenhos sendo exibidos no Cine Pax. Ficou evidente na memória de um tempo em que Cajazeiras tinha, graças a um bispo apaixonado por cinema, duas janelas para o mundo.
 
Dom Zacarias não instalou 'salas educativas', nem tão pouco 'cinemas paroquiais', daqueles fincados em uma sala específica de uma unidade eclesiástica, destinada ao doutrinamento de religiosos da diocese. Eram cinemas de verdade, grandiosos, ambiciosos espaços de exibições comerciais - e ainda assim guiados por um coração que conhecia mais de humanidade do que de lucro.
 
E talvez seja essa a imagem final que melhor o define: um bispo que, entre sermões e projetores, construiu para seu povo não apenas templos de oração, mas templos de imaginação e magia. Um homem que acreditou que Deus também morava na luz que atravessa a escuridão - inclusive na luz de um filme recém-projetado sobre o mormaço de uma noite quente, como sempre foram as noites em Cajazeiras.

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terça-feira, 25 de novembro de 2025

O Cabaré das Mangueiras

 cleudimarferreira

Ruinas do Cabaré de Lilia ou Cabará das Mangueiras. Imagem retirada do Google Maps


Cabaré das Mangueiras não era e, nunca foi, o letreiro principal em destaque na sua fachada. O nome oficial do peixe que era vendido por Lilia, chamava-se Dallas Motel - anexo chamativo ao local ou parceiro, escrito em letras grandes, fonte areal, com formato itálico, acrescido de singelo sombreamento, estilo comum das legendas em pontos comerciais ou em equipamentos desse gênero instalados nos beiços das estradas desse país. 

Eclético, ambiente versátil, a área de lazer e entretenimento masculino, contava com atração feminina de livre escolha; quartos equipados - adaptados para relaxamento das tenções; serviço de bar completo com música ambientada; pousada multiuso e outros atrativos conforme a imaginação do cliente. Era mais ou menos assim o ambiente da Dona Lilia. Um espaço atraente, ordinário, que ainda está no subconsciente da população de Cajazeiras. Suas lembranças foram regadas até aqui e, o seu crescimento popular entre todos, se tornou evidente, através das histórias vividas e, outras, através da oralidade de quem viveu certa vez, o dia a dia desse local.

Hoje, a sua imagem nos remete ao passado, já que as ruinas do lendário cabaré, é ainda, o que melhor espelha esse momento. A existência das lembranças dos amores perdidos da cidade que não dormia nunca. Através das cortinas cintilantes do seu salão principal e, dos chiados das radiolas, sucumbia sempre a máscara da razão, do que foi eternamente a sua função.

Um tempo que ficou obsoleto, que foi perdendo paulatinamente seus espaços preciosos, para as redes sociais, depois do advento da Internet e os aplicativos para smartphones. Agora não é mais ponto fixo ou via Sedex, é telepaticamente virtual. Lembro muito bem, que certa vez a convite de amigos, meu pai foi uma pescaria em um açude que ficava nas imediações dessas instalações e, me levou junto com ele. 

Nem eu, nem ele, sabia que para chegar no local da pescaria teria que passa ao lado da estalagem de Lilia. Em direção a pescaria, quando íamos passando de lado desse mundo de prazer e amor, um gaiato do grupo sugeriu que todos parassem no local para tomar uma cervejinha.

A tensão já foi logo se apoderando de mim. Meu pai tentou evitar essa parada, mas a maioria como sempre, é sempre a vencedora. Paramos no lugar corretamente arborizado, apoderamos de duas mesas conjugadas debaixo de um sombreiro frondoso. Logo um grupo de mulheres prestativas e educadas vieram a nós para nos atender.

Depois de umas três cervejas, começou o atiramento de alguns do grupo e, as meninas com suas cordialidades naturais de sempre, reciprocamente, deram seus ares das graças, começaram a fazer colo nas coxas de todos que estavam naquelas mesas.

Para mim um adolescente, tudo aquilo era estranho e novidade, até que uma veio e sentou no colo de meu pai e começou brincar com o velho, fazendo cafuné na cabeça dele e dando alguns beijos no seu rosto. Vige maria, eu saí de perto cheio de remoço e com a consciência pesada.

Meu pai ficou encabulado e, aí, a moça deixou o seu colo. Daí veio a piada de Zé da Onça com a conivência de Zé Nilo da Silva: Zé, tu também... para onde vai tem que trazer esse teu filho! Meu pai respondeu já com o volume lá em cima: - E eu lá sabia que ia passar no Cabaré de Lilia! Logo em seguida desfizeram a mesa, pagaram as despesas e, seguimos direto para a tal pescaria.

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sábado, 8 de novembro de 2025

Não vi erros em "O Agente Secreto"

cleudimarferreira

O cinema brasileiro, de vez, amadureceu definitivamente. Hoje é um pomar carregado de frutos maduros, adocicados, que nos faz sentir orgulho quando vamos ao cinema. Continua com a nossa cara de sempre, sem perder a essência, porém moderno em consonância com o que há de melhor nas produções no mundo. Portanto, viva o cinema brasileiro!
Estava ansioso para ver “O AGENTE SECRETO”. Isso por que, os agraciados com as avant-premières do filme de Kleber Mendonça, picharam as redes sociais com textos eloquentes, elogiando o filme, criando uma expectativa nos que tiveram que esperar a estreia oficial ontem, dia 6.
Não transmutei a minha ansiedade, sendo o primeiro a chegar; a bater na porta do Cine Banguê para ver o filme na tarde e noite de ontem. A minha ausência foi em razão de ter dado choque cultural com o show de Toquinho e eu não poderia perder a apresentação do cara amigo/parceiro de Vinicius.
Hoje, mesmo enfrentado o complicado trecho da BR230, cheguei a tempo de ver o filme na sessão das16 horas. Fui ver, procurando os pontos falhos, os momentos conflitantes no roteiro, que pudesse ser passivo de observação crítica (talvez) ou algo assim, no trabalho do diretor pernambucano. Mas não a encontrei nenhuma e, acho, que quem estava comigo no Cine Banguê, também não encontrou.
O longa é prefeito! é lindo, porque espelha uma história contundente de uma época de um Brasil perdido, violento. É retrô, uma vez que mostra uma cidade-Recife dos anos 70, em movimento, em transformação. É realista, por que tudo mostrado, tem fidelidade com a vivência social, até certo ponto romântica, de uma década intermediaria que sonhava com liberdade.
Não sou crítico de cinema, logo não vi falha no filme! Pode ser que apareça um analista com página em folhetim, que ache algo de errado no filme. Eu não achei e nem vi! É bem acabado, esteticamente correto. Acho que se não tiver na premiação do Oscar de 2026, um filme a altura de O AGENTE SECRETO, facilmente teremos mais uma estatueta entre nós, para fazer par com “Ainda Estou Aqui" dirigido por Walter Salles.
O filme é multifacetado com cenas empolgantes. Logo no início, a cena do posto de gasolina, minuciosamente dirigida com perfeição, colocando frente-frente dois atores experientes; o protagonista (que dispensa comentários) e o talento do ator paraibano Joálisson Cunha, no encontro real dos dias contemporâneos, onde o sentimento pela vida humana parece não ter sentido. Perfeito, nem no cinema americano, durante o movimento Nova Hollywood que ousou fazer mudanças profundas nos filmes hollywoodiano, vi algo parecido.
A cena que mostra a cabine de projeção do Cine São Luiz, com os projetores a carvão em ação, é realismo puro. Vivi isso nos cinemas da minha terra. A direção de arte, caracterizada pelas cenas mostradas em toda produção, cito com destaque a que mostra, em plano aberto os carros de época; e a sequência dos vários fuscas com cores variadas passando em uma das pontes do Rio Capibaribe, parece real, nos fez voltar ao passado. Muito bacana.
Portanto, nosso cinema cresceu, emancipou-se em qualidade técnica e produção. Hoje somo gigantes. Saímos daquela condição de coitado subserviente das estéticas impostas pelos grandes estúdios no mundo. Mas para que a peteca continue nas alturas, sempre é bom mais investimentos; mais incentivos; mais leis que garanta seu brilho intenso nos olhos de quem queria, no passado, o seu fracasso, a sua desgraça.
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