porWaldemar José Solha
Com o
toque de Midas de Bráulio
Tavares e do autor de “O
Auto da Compadecida”, eis o "ABC de Ariano Suassuna".
Tenho esse livro - lançado pela José Olympio
Editora - entre algumas preciosidades, como: "O Escorpião
Encalacrado", de Davi
Arrigucci Jr. (sobre a obra de Cortázar); "Hamlet e o
Complexo de Édipo", de Ernest
Jones (que aplica a teoria freudiana no príncipe da Dinamarca e
no próprio Shakespeare);
"Como se Faz um Filme", de Eisenstein (em
que ele conta como criou “O Encouraçado Potenkin”); "A Filosofia da
Composição", de Edgar Allan Poe (sobre o surgimento e evolução de seu
célebre poema "O Corvo") e "Signo e imagem em Castro Pinto",
de João Batista B. de Brito.
Como intelectual enciclopédico que é, tão fissurado
pelas artes quanto pela ciência e tecnologia, avesso a todo mistério e segredo
- se desvendável -, Bráulio revela que foi buscar a ideia estrutural desse
perfil biográfico de Ariano em obras como o "ABC de Castro Alves", de
Jorge Amado, e o “ABC de Jesuíno Brilhante”, de autor anônimo (reproduzido em
"Heróis e Bandidos", de Rodrigues de Carvalho). Mas esse seu livro me
remete diretamente, também, ao "Dicionário Khazar", de Milorad Pavić,
um romance sérvio que marcou época nos anos 80.
O resultado de todas essas influências é o retrato
cubista, por sua fragmentação temporal, espacial e temática, de um personagem
fascinante (Suassuna), que nasceu num palácio, o da Redenção, teve o pai
assassinado no Rio, viveu a infância e a adolescência em Taperoá, sertão
paraibano, estudou Direito e Filosofia no Recife, ficou famoso por suas
aulas-espetáculos,
por seus ensaios, por uma peça de teatro (O
"Auto da Compadecida"), por um romance de título estranho ("A
Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta"), por suas incursões
nas artes plásticas e na poesia, por ter fundado o Movimento Armorial, etc, etc...
E bote etc. nisso! Entrou na Academia Brasileira de Letras. Foi tema, no
carnaval carioca, do samba-enredo "Aclamação e Coroação do Imperador da
Pedra do Reino". Foi assunto do documentário "O Senhor do
Castelo", de Marcus Vilar. Foi nomeado - aos oitenta anos - secretário de
cultura do governo do estado de Pernambuco e - consagrado - seguiu de rota
batida para a imortalidade, devidamente coroado pelos louros do plim-plim.
Claro que na ficha catalográfica do ABC consta “Biografia”. Claro que na d“Os
Sertões” de Euclides da Cunha não há registro de um "romance". Mas é
como eu li todos dois. Com mais ou menos apego à realidade nua e crua, tem
surgido toda uma série de famosos romances-verdade, nonfiction novels ou romans-a-clé, como "A Sangue
Frio" ("In Cold Blood"), de Truman Capote, "Pé na
Estrada" (“On the Road”), de Jack Kerouac, e "Coração das
Trevas" ("Heart of Darkness"), de Conrad, e até eu parti para a
mesma senda na parte intitulada “A Gigantesca Morgue” na obra "História
Universal da Angústia", ao juntar - numa série de contos de extrema
violência -, a condensação de 126 reportagens nessa linha, colhidas num período
de dez anos. Esse artifício leva o leitor a receber a experiência da realidade
com uma força extraordinária. No "ABC", a densa conjunção de solidez,
argúcia, clareza e beleza faz com que o livro salte - no meu entender - do
terreno simplesmente biográfico para o romanesco. Há um momento em que o
próprio Bráulio diz, nesse seu trabalho:
Quanto mais verdadeira uma coisa, mais bela. Cita
Keats:
Beauty is truth, truth Beauty.
Beleza é verdade, verdade, Beleza.
E a Beleza, segundo Plotino (citado por Ariano,
idem por Bráulio), é… os seres em máximo de ser.
O livro mostra como Suassuna, que diz ser feio
desde menino, mas apaixonado pela beleza, torna-se, com o tempo, um ser
"em máximo de ser", dotado, portanto, de enorme beleza, pelo que
passou a ser intensamente amado por todo o país. "A década de 1990 - diz
Bráulio - trouxe-lhe notoriedade pessoal de um modo que ninguém seria capaz de
supor”. A tal ponto, anota, que surgiu "um grau de impaciência do autor
com a quantidade de compromissos a que é submetido". De fato, ele viveu,
no final, numa roda-viva "de aulas, feiras-de-ciência, artigos,
mesas-redondas, programas de televisão, homenagens, semanas culturais,
entrevistas para jornais, orelhas de livros, depoimentos para vídeos e filmes
ou revistas, cartas de recomendação para instituições culturais, apresentação
em catálogos de exposições”, e a lista prossegue interminável.
Como diz a raposa ao nosso distante Pequeno
Príncipe:
“Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu
as apprivoisé.
- O que é apprivoisé? - pergunta-lhe o menino.
Apprivoiser é
"domesticar, domar, amansar”, diz o dicionário francês-português. Mas a
tradução corrente da frase, é "Tu te tornas responsável para sempre por
aquilo que cativaste". E o eco responde "domesticaste, dominaste,
amansaste”. Parece que Ariano conseguiu, na verdade, em sua luta pela
preservação de nossa cultura burro-xucra, domá-la, dominá-la, monopolizá-la -
apesar do massacre alienígena. Não só pelo seu trabalho de autor, como pelas influências
que exerceu e exerce.
O "ABC de Ariano Suassuna" foi dado à luz
ao sol da onça caetana. Louvado seja ele, além de seu autor e de seu tema.
W. J. Solha é
dramaturgo, artista plástico e poeta. fonte: https://www.carlosromero.com.br/
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