Havia um menino
Que sabia onde morava
Um médico, um açougueiro,
Um engraxate, um sapateiro,
Um jornalista, um carteiro,
Um motorista, um coveiro.
Havia um menino
Que sabia onde morava
Um malabarista, um engenheiro
Um pintor, um cozinheiro,
Um soldado, um ferreiro,
Um padre, um padeiro.
Havia um menino
Que sabia onde morava
Um advogado, uma prostituta,
Um músico, um sineiro,
Um garçom, um enfermeiro,
Um professor, um biscateiro.
Que não tinha onde morar.
João morreu atropelado.
Morreu Maria assassinada.
Jorge morreu drogado.
Pedro morreu afogado.
Um corpo não foi identificado.
Uma criança espera seu anjo da guarda.
E a minha lança perfumada
Como um infante
Que perdeu a infância
E a minha infantaria.
Só no espelho o coração ferido
Como um cavaleiro
Que perdeu a dama
E a cavalaria.
De goela abaixo
E atravessei a rua
Como um artilheiro
Que perdeu o gol
E a artilharia.
Meu castelo, minha espada, meu anel
E as fotografias amarelas guardadas
Na minha cômoda de cristal
E o espelho d'água entre as dunas
Onde eu fazia a lua para brincar
A minha tabuada mágica
E as histórias de um vento azul
Que traziam anjos às madrugadas
Meu uni-verso, suspiro poéticos e saudades
De andar a pé, olhar o céu, cantar um fado
No Pátio das Flores, no Arco das Portas do Mar.
Onde antes eram castelos
E reinava a fantasia
De minha pequenez
Violência que converte transfigura
Com suas botas de sete léguas
Ao silêncio de uma cova escura
Brotando no colo das flores
Desenhos fantásticos surgidos
Nas ruínas do muro de arrimo
Onde antes eu ouvia o canto do sabiá
E eu nem sabia como era sábia
A vida de quem chorou
Quando não o encontrou mais a cantar.
A cavalgar os mares do teu corpo
Sereia de cactos e juazeiro
De mãos de seda e de marfim
Cabelos soltos graúnas
Nos cata-ventos bálsamo de alecrim
Oh! Rosa linda, o meu olhar
Porque guardo na algibeira o teu retrato
A casa nua na montanha
A estiagem nos pastos da aldeia
Que nem a tristeza estridente de um faquir
Com os seus ruídos enegrecidos de agonia
Apagará em mim teu brilho