cleudimarferreira
No final da primeira metade dos anos 1980, o Brasil ensaiava a própria respiração depois de anos de silêncio imposto. A ditadura ainda rondava, mas já não assustava tanto como antes; havia fissuras no concreto armado, duro do regime militar, e por elas escapavam, mesmo sem a total liberdade que todos queriam, músicas, desejos, rebeldias, caras pintadas e gente nas ruas.
Sim, a juventude desejava as ruas, necessitava de som alto, de rock and roll,
queria viver, ter um futuro. E eu, aos 22 anos, desejava apenas viver -
acreditando que viver era ir desbravar, aventurar. Achando que qualquer
estrada, era o caminho ideal para felicidade e que resolvia tudo e, nela,
estava a libertação para vida.
E fui sem lenço, sem documentos. Com a convicção ingênua de que São Paulo era
um portal, seguido de uma ponte confiável para Terabítia. Por isso deixei o
sertão, o calor conhecido, os rostos familiares, e atravessei o país como
tantos nordestinos fizeram antes de mim, carregando sonhos na bagagem
invisível que eu levava. São Paulo não era só uma cidade: era uma ideia que daria certo para
qualquer um e, porque não, para mim!
Já em solo da grande metrópole, a realidade me encontrou cedo, às quatro e meia
da manhã. Passei a encarar o frio paulista - um frio que não perdoava e, não
perdoa - cortando o corpo, enquanto a cidade ainda dormia, silenciosa, cinza,
indiferente.
Eu caminhava a pé por entre as vertigens da garoa e, trechos de
cerração fechada que escondia os arranha-céus. Encarava esse encharco frio porque
dinheiro para mim era coisa raro que não chegava nunca e, esperança que andava comigo, não pagava
passagem.
De fábrica em fábrica; de portão em portão; preenchia fichas, repetia meu nome,
oferecia minha juventude como quem oferecia fé, em troca de um emprego que
nunca vinha. O país atolado na crise, com a inflação chegando aos 60% ao mês, o
crescimento encolhia, não chegava a todos e nem passava por mim.
Suportei seis meses tentando caber numa cidade que parecia grande demais para quem vinha
do sertão. Querendo gostar de uma cidade que não queria gostar de mim. Um em vão período aprendendo que o concreto também cansa; que a
multidão pode ser solitária, e que o sonho, quando não encontra chão, pesa
demais e fica difícil de conduzir.
Quando voltava, por volta das duas da tarde, o corpo vinha antes e a fome logo
atrás. Mas havia uma salvação simples: uma panela de baião de dois com
almôndegas ao molho da minha tia Francisca. Aquela comida não era apenas
alimento; era afeto quente; era um pedaço do Nordeste resistindo dentro da
metrópole. Minha tia, sem saber, me devolvia forças todos os dias.
Mas os sonhos nem sempre sobrevivem ao mundo real. E São Paulo, apesar das
promessas, não me quis e, a volta não teve glamour. Foi na boleia de um
caminhão - uma generosa carona de um amigo do meu pai, fez eu cair na real.
Estrada longa, poeira, silêncio e pensamentos demais que não cabiam na minha bolça de couro.
Sem emprego; voltei sem dinheiro; sem perspectiva imediata, como se não soubesse o que fazer adiante - mas voltei
inteiro. Trouxe comigo a minha máquina de escrever Olivetti, fiel companheira;
a bolsa de couro atravessada no peito; a sandália de rabicho nos pés; e um
acervo invisível de poemas escritos entre o frio, a espera e a desilusão. A
cidade não me deu trabalho, mas me deu palavras, me deu poesia.
Era um tempo de novidade no ar - as rádios FM. Elas surgiam com força total
como símbolo de modernidade, falando direto com a juventude, rompendo o tom
sisudo das AMs. Em São Paulo, elas eram muitas, e no 'dial' parecia pulsar a
liberdade.
Rita Lee reinava absoluta. Lança Perfume explodia nas emissoras FM e AM. Era o
hit das ruas, estava nas cabeças de muita gente. Era a trilha sonora de um país
que queria esquecer o medo e aprender a dançar outra vez. A “titia Rita” nos
ensinava, sem pedir licença, que viver também podia ser irreverência e
liberdade.
Voltei para Cajazeiras diferente. Não derrotado - apenas atravessado pela
experiência. Amadurecida à força, aprendi que ir, é necessário ter coragem e,
voltar, precisaria ter mais ainda. A aventura não deu certo, mas deixou marcas
profundas, experiencia e aprendizado.
Descobri que sonhar custa caro; que tentar, dói; e que voltar, também exige
resiliência. Aprendi, sobretudo, que há viagens, às vezes, quando não nos levam
aonde queremos, mas nos transformam em possíveis caminhos.
E talvez tenha sido ali, naquele ir e voltar, que eu tenha descoberto que nem
toda viagem é para ficar. Mas que algumas são apenas para ensinar o que devemos
aprender da vida. Assim sendo, comecei a entender que alguns sonhos não são
para serem vividos - são para serem concretizados.
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