terça-feira, 30 de dezembro de 2025

A poética do amor atemporal em Chico Buarque

Rui Leitão


São músicas como Futuros Amantes que fazem Chico Buarque ser considerado um gênio. A letra, construída como um poema belíssimo, fala do amor como algo eterno, perene, transcendental. Mesmo quando não é correspondido, o amor permanece para sempre e, quem sabe, um dia — ainda que milênios depois — poderá ser vivido por outras pessoas. Por isso, é atemporal. A canção data de 1993 e integra o álbum Paratodos.

“Não se afobe, não / Que nada é pra já / O amor não tem pressa”. Chico começa aí a diferenciar o amor da paixão. A paixão é imediata, exige urgência, não sabe esperar. O amor, ao contrário, é paciente, resiste a tudo, inclusive ao tempo. Não adianta afobação: ele é sereno e perdura pela eternidade. A paixão relaciona-se ao desejo carnal; o amor, aos sentimentos da alma.

“Ele pode esperar em silêncio / Num fundo de armário / Na posta-restante / Milênios, milênios / No ar”. Os amores, mesmo não correspondidos ou não vividos em sua plenitude, não conseguem morrer. Perpetuam-se, ficam guardados, à espera de que, no futuro, possam ser utilizados. Sua realização pode ser adiada, mas permanecem vivos por milênios, enquanto não consumidos.

“E quem sabe, então / O Rio será / Alguma cidade submersa”. O compositor imagina o Rio de Janeiro, em tempos futuros, como uma cidade submersa, à semelhança da Atlântida, o continente perdido. Seus registros históricos ficariam debaixo d’água, intactos, preservados, à espera de pesquisadores dispostos a conhecer uma civilização desaparecida.

“Os escafandristas virão / Explorar sua casa / Seu quarto, suas coisas / Sua alma, desvãos”. A cidade isolada e mergulhada passará a ser explorada por escafandristas, que vasculharão tudo e penetrarão nos espaços da intimidade, onde o amor nasceu e germinou. Buscarão, nos recantos mais escondidos, vestígios da vida e da alma, tentando encontrar aquilo que não se materializou, mas permaneceu como expectativa: o amor.

“Sábios em vão / Tentarão decifrar / O eco de antigas palavras / Fragmentos de cartas, poemas / Mentiras, retratos / Vestígios de estranha civilização”. Por mais que tentem compreender, não conseguirão encontrar respostas. Seremos, para eles, uma civilização desconhecida, estranha. Os documentos narram histórias que não conseguem decifrar. Tudo se transforma em enigma indecifrável.

“Não se afobe, não / Que nada é pra já / Amores serão sempre amáveis”. A precipitação é desnecessária, porque o amor, mesmo não vivido no tempo desejado, encontrará seu destino no momento oportuno. Se hoje não se efetiva, talvez daqui a milhões de anos seja alcançado e vivido por outro. O amor existe para ser exercido, vivido e aproveitado, ainda que em épocas distantes. “Amores serão sempre amáveis”: não se perdem com o passar dos anos.

“Futuros amantes, quiçá / Se amarão sem saber / Com o amor que eu um dia / Deixei pra você”. Quem sabe, diz o eu lírico, o amor deixado em reserva — não correspondido, mas intacto em sua essência —, ofertado à pessoa amada em vida, seja vivido por outrem no futuro, sem que este perceba tratar-se de uma herança afetiva recebida.

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