Ao revisitar minhas memórias de infância no Alto Sertão da
Paraíba - entre Catolé do Rocha, o Pilar e o Cajueiro - descubro que a
religiosidade nunca foi para mim uma doutrina, mas um ambiente. Ela se
apresentava não como discurso, mas como presença silenciosa, especialmente nas
casas simples da zona rural, onde quase sempre havia um quadro do Sagrado
Coração de Jesus pendurado na parede principal. Aquela moldura oval envelhecida
parecia fazer parte da própria arquitetura emocional da casa.
Essas imagens não eram apenas objetos decorativos:
funcionavam como uma espécie de eixo espiritual da família. As rezas, as
promessas, os velórios, os encontros, tudo ocorria sob o olhar daquela figura
que, para mim, menino, emitia um mistério difícil de traduzir. Esse mistério
não estava no dogma em si, mas na forma como as pessoas acreditavam, no modo
como a fé organizava o cotidiano e oferecia uma dignidade silenciosa a vidas
tão marcadas por desafios.
Nas caminhadas com meu pai pelos sítios, aprendi a observar
essa relação entre imagem e existência. Meus avós, tanto do lado paterno quanto
materno, tinham uma devoção naturalizada, que não se impunha, apenas irradiava.
Havia ali uma ética da fé - discreta, forte, sem necessidade de explicações. E
mesmo quando, anos depois, me declarei ateu, nunca deixei de respeitar
profundamente essa forma de acreditar. Talvez porque eu soubesse que ela
abrigava algo essencial: uma maneira de enfrentar a vida com coragem, sentido e
esperança.
Nos últimos dez anos, minha própria visão de Deus se
transformou. Hoje não dependo de sistemas dogmáticos nem de fronteiras
religiosas. A ideia de Deus que me acompanha é mais ampla, mais ligada ao
humano, ao natural, ao que existe de melhor no gesto e na convivência. Cristo,
por sua vez, permanece para mim como uma figura central na história da
humanidade - não pela imposição religiosa, mas pelo exemplo ético. Uma síntese
de dignidade, cuidado, transformação e amor ativo.
É curioso perceber como, ao adquirir recentemente uma
fotografia antiga do Sagrado Coração - semelhante àquelas que marcaram minha
infância - reencontrei não apenas um objeto, mas um elo. Um elo entre a
simplicidade das casas sertanejas, a espiritualidade popular e meu próprio
percurso interior. E compreendi que certas imagens não nos abandonam: elas
permanecem porque guardam um significado que evolui conosco.
Não se trata mais de devoção no sentido tradicional. É reconhecimento. É memória. É a certeza de que, no fundo, toda fé - seja ela qual for - expressa um desejo humano legítimo: o desejo de transformar a si mesmo e o mundo ao redor. E isso, parceiro, continua sendo tão necessário quanto naquela parede antiga de barro.
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