quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

EU VIVI!

   Aconteceu em uma escola 
   no bairro dos Bancários, em João Pessoa.   

Imagem: Reprodução da obra de Salvador Dalí. "Livro se transformando em mulher nua", 
Óleo sobre tela de 1940. Acervo: Fundação Gala-Salvador Dalí.


Ultimamente tenho dormido com o improvável. Nesse estado de incerteza e até ambíguo que me tem roubado o sono, as noites sempre tem sido moribundas. E aí o pouco de sono que me é permitido pelo olhos profundo da insônia, as avalanches de sonhos inesperados, muitos irregulares, abstratos, surreais e psicossomáticos das minhas trevas, têm revelado imagens que eu não precisei sentir e nem tão pouco imaginei viver ou ter como referência para o meu convívio material ou espiritual.

Esse tal comportamento dimensionado e ilógico, foi quebrado nesta noite de quinta-feira passada para a sexta-feira seguinte, quando embora não tinha tido um sono normal, como deveria ter, pelo menos os sonhos que insistia em povoar meu sono, não tiveram no final um desfecho fantasmagórico com dantes. Eles vieram! Mas vieram com luz; com cores; coisas só do bem. Coisas de um Espirito Santo com todos os Arcanjos do céu. De Deus mesmo.

Amanheci com o sol bonito da manhã iluminando o mundo e, com disposição para enfrentar a mesmice do dia-a-dia. Então eu me preparei com todo gás possível, para desenhar a minha passagem por aquela sexta. É que eu tinha um trabalho para começar numa escola pública e assim, saí de casa a pé, por que na real, professor pobre que não teve oportunidade ainda, vive um incômodo cotidiano a margem da vida, andando muitas vezes a pé mesmo, oferecendo a cara, de graça, aos ardentes raios solares do dia-a-dia.

E foi para esta escola... Chegando lá, foi até a biblioteca aonde ia me encontrar com os alunos, em número de doze, inscritos na atividade previamente programada. Entretanto tal foi a minha surpresa, só compareceu uma aluna. Dei uma volta pela escola, procurando mais alunos para compor um número maior que possibilitasse dar início a essa atividade. Toda minha procura foi em vão, nada encontrei. Porém quando voltei à biblioteca, já havia três alunas na mesa a minha espera. Tirei o notebook da bolsa e comecei mostrar um vídeo para eles.

Quando dei início às explicações das etapas do trabalho que ia fazer com os mesmos, uma das alunas em condição social bastante carente - pois morava em uma comunidade próxima a escola desprovida da ação do poder público, começou falar da sua situação, onde morava e, das dificuldades de se deslocar até aquela unidade escola, já que cuidava dos seus irmãos menores na ausência da mãe. Disse também que apesar de todo, fazia um esforço para participar do programa "Mais Educação", além de frequentar as aulas de violão, cuja atividade já havia proporcionado a ela, tocar o instrumento e, que já estava tocando muito bem.

Fiquei contente com seu esforço e dedicação da aluna as aulas de violão. E aí eu perguntei: Você não tem violão não? Ela respondeu: Não! Aprendi com os da escola. Senti uma seriedade extrema na fala naquela aluna. Seu modo de vestir; de falar; das dificuldades da sua condição de ser carente humilde e, da vontade em ser gente, mas gente decente. De ter um futuro melhor.

Parei a conversa e em um instante olhei nos seus olhos e vi que nos seus relatos, havia verdades. De repente veio uma contração no coração e uma quase voz martelando a cabeça, os ouvidos, pedindo que eu desse um violão aquela garotinha. Aí eu disse: vou te dar um violão e quando terminar a aula você já vai pegar.

A menina foi no céu e voltou de tanta alegria. A nossa interação foi interrompida com barulhos e quebra-quebra produzidos dentro daquela unidade de ensino e, em seguida, crianças desesperadas gritando, vindo em direção à biblioteca onde estávamos. Corri para fora, para ver o que estava acontecendo. Ninguém dizia nada, professores corriam para todos os lados. Funcionários desesperados fechavam as salas de aulas.

Procurei me fixar em algum ponto da escola, onde poderia vim aquela barulheira toda. Uma criança corre em minha direção e grita: Professor é naquela classe, não entra lá não, por favor. Eu, mesmo ouvindo o pedido daquela criança, corri em direção a sala e me deparei com uma professora em desespero tentando proteger duas alunas que ainda se encontrava naquela sala de aula.

Quando entrei, vi uma desordem e uma desarrumação na sala e um menino em desespero gritando, derrubando, quebrando tudo: cadeiras, mesas, materiais escolares pelo chão. A professora correu e eu tentei acalmar aquele garoto, que aparentemente estava com uma força sobrenatural.

Agarrei-me com ele e segurei forte. Ele começa a me morder e, quando se soltava jogar cadeiras e que estivesse próximo dele, em minha direção. A força do garoto era algo incomum que senti dificuldades de conter a sua fúria. E assim tentando, dá uma de exorcista, tirei com toda dificuldade o garoto da sala para o corredor com ele gritando "eu não sou doido", "eu não sou doido". Segurei e pedi que trouxesse água. Como! Os funcionários da escola não tiveram coragem de se aproximar do garoto.

Como socorro nenhum chagava para me ajudar, com todo esforço que tive naquele momento, levei garoto até o bebedor e aí, ele foi se acalmando, se acalmando. Depois de estar com ele praticamente no colo, um pouco mais calmo, a professora do garoto apareceu e levou o mesmo para uma sala reservada.

Senti que naquela sexta-feira, fiz duas boas ações: A de ter dado um dos dois violões novinho que tinha em casa - o que estava autografado por Zé Ramalho e que eu não estava usando, a uma aluna que necessitava de um. Doei pesando no futuro daquela aluna. Quem sabe a mesma não se tornaria uma grade musicista. E a outra a ação, foi a de ter contido, não sei como, aquele aluno enfurecido, descontrolado, que estava quebrando tudo dentro da sala de aula.

Em casa, quando cheguei, lembrei-me dos sonhos positivos que havia sonhado na noite anterior. Ou seja, depois de uma sequência de sonhos inspirados nas telas de Salvador Dalí e outros experimentados nas práticas freudianas, acabei colocando em xeque-mate naquela sexta-feira, o que a razão determinou como deveria ser o meu dia, para aquele sexta-feira.

Cleudimar Ferreira



Texto publicado no Facebook, em 23.Ago.2015

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