terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Esperança Está Morta

Francc Neto



Dizer “ESPERANÇA ESTÁ MORTA” não soa, aqui, como provocação nem como frase de impacto. Soa como um reconhecimento tardio, quase cansado, de algo que já vinha se esgarçando. Do mesmo modo que, quando Friedrich Nietzsche afirmou que Deus estava morto, ele não anunciou um acontecimento pontual, mas nomeou um estado de coisas: um mundo que continuava funcionando com categorias cujo fundamento já havia ruído. A esperança, hoje, ocupa um lugar análogo. Ela ainda circula, ainda é evocada, mas perdeu densidade ontológica. Funciona mais como retórica de sobrevivência do que como força real.

É nesse ponto que Albert Camus se torna decisivo. Em O Mito de Sísifo, Camus parte de uma constatação simples e devastadora: o mundo não responde. Não responde às perguntas últimas, não responde ao sofrimento, não responde à exigência humana de sentido. A esperança, quando aparece, surge como tentativa de fechar esse silêncio com uma promessa - religiosa, metafísica ou histórica. Camus chama isso de “suicídio filosófico”: não matar o corpo, mas matar a lucidez. É por isso que ele recusa a esperança como saída. Não porque defenda o desespero, mas porque recusa a mentira.

A vida, em Camus, não se justifica por um amanhã melhor. Ela se sustenta na permanência do conflito. Viver é aceitar que não há garantia, e ainda assim continuar. Quando ele escreve que é preciso imaginar Sísifo feliz, não está propondo um consolo poético, mas uma ética dura: a felicidade possível é aquela que nasce da consciência plena da repetição, da queda inevitável da pedra, da ausência de redenção. Não há progresso, não há acúmulo, não há saldo final. Há apenas o gesto reiterado, assumido sem ilusão. A esperança, nesse cenário, não apenas morreu - ela se tornou desnecessária.

Walter Benjamin, por outro lado, não abandona a palavra “esperança” com a mesma secura. Ele a desloca até quase torná-la impronunciável. Nas Teses Sobre o Conceito de História, Benjamin escreve contra a ideia de progresso com uma violência rara. O futuro, quando elevado a promessa, não salva: ele absolve a catástrofe. Cada passo dado em nome do “avanço” deixa atrás de si uma pilha de ruínas. A história, vista do ponto de vista dos vencedores, transforma o desastre em etapa necessária. É contra isso que Benjamin pensa.

A imagem do Angelus Novus, de Paul Klee, condensa essa posição. O anjo olha para trás e vê apenas destroços; gostaria de deter-se, de recompor, de acordar os mortos. Mas uma tempestade - chamada progresso - a empurra para o futuro. Aqui, a esperança deixa de ser promessa e se torna dívida. Não uma esperança para os vivos que aguardam melhorias, mas uma esperança mínima, quase negativa, dirigida aos que já não podem esperar. Benjamin chega a dizer que a esperança só nos é dada por causa daqueles que não têm esperança. Não se trata de consolar, mas de não consentir com o esquecimento.

Entre Camus e Benjamin, o ponto de contato não é pequeno. Ambos rejeitam a esperança como anestesia histórica. Ambos recusam a ideia de que o tempo, por si só, redime. A diferença está no gesto final. Camus permanece no presente, no corpo que age sem horizonte, numa ética da permanência sem promessa. Benjamin, ao contrário, interrompe o presente em nome do passado, exigindo que cada agora carregue consigo a responsabilidade pelos vencidos.

Dizer hoje “esperança está morta” pode soar, então, como um gesto duplo. Camus ouviria nisso a possibilidade de uma vida mais honesta, menos dependente de ilusões futuras, mais atenta ao peso real do existir. Benjamin ouviria a denúncia de uma esperança fraudulenta - aquela que, ao prometer o amanhã, autoriza o massacre de hoje. Em ambos os casos, não se trata de niilismo, mas de gravidade.

Talvez o ponto mais incômodo seja este: quando a esperança morre, não ficamos livres. Ficamos responsáveis. Sem Deus, sem progresso, sem promessa, resta o gesto nu - viver, lembrar, agir - sabendo que nada garante sentido a posteriori. Não há porto, não há mapa, não há redenção. Apenas a travessia, carregando consigo, como peso e não como consolo, aquilo que não pode mais ser salvo.

deixeSeuCOMENTARIO



 

Nenhum comentário: