sábado, 16 de agosto de 2025

ENTRE O ABISMO E A CARNE

Francc Neto


O que emerge nessas imagens não é apenas forma, cor ou matéria: é o rumor de uma ontologia própria, uma poética que se constrói como quem descobre o subterrâneo da existência. A série parece nascer de um lugar onde o grotesco e o sublime não se repelem, mas se enlaçam em tensão vital - a ferida que se abre é também claridade.

Há aqui um jogo contínuo entre peso e leveza, concreto e sombra, vermelho e silêncio. O vermelho não é cor, é pulsação: arde, sangra, denuncia o instante em que a arte se aproxima da carne. O branco não é neutralidade: é vigília, é o campo onde se gravam os choques, onde o excesso encontra seu repouso provisório. Entre os dois, insinuam-se restos de metálico, de ossatura, de rosa cansada - como se tudo fosse testemunho de um corpo maior, um corpo-mundo que resiste à decomposição.

Ontologicamente, essas obras não buscam representar, mas instaurar. São acontecimentos mais que imagens, são estados de ser. Cada peça carrega uma lembrança fossilizada, mas também um grito contemporâneo. Há nelas uma arqueologia do presente: resíduos, fraturas, concreções que nos fazem pensar naquilo que permanece mesmo quando tudo parece se desfazer.

O grotesco que atravessa a série não é niilista; é um grotesco fecundo, que descobre beleza nas ruínas. Essa estranheza não repele - seduz. O olhar é capturado, não pelo conforto, mas pelo desconforto que revela, pelo excesso que nos obriga a pensar: o que somos diante do que resiste em nós e fora de nós?

Entre o Abismo e a Carne propõe, assim, não uma narrativa, mas uma condição: a de permanecer diante do irrepresentável, de suportar o peso do indizível e ainda assim extrair dele poesia. É um convite à vigília estética, à experiência radical de olhar e deixar-se olhar pelo que excede o humano, mas só se manifesta no humano.


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sexta-feira, 15 de agosto de 2025

ESCRITOR DE SEGUNDA UNIDADE

 João Batista de Brito

A expressão acima não existe. Acabei de inventá-la, e o fiz em analogia ao cinema. A expressão cinematográfica é “Diretor de Segunda Unidade”, que preciso explicar para justificar o título e o conteúdo desta matéria.

Vá lendo, que chego lá.

Hoje nem tanto, porém, nos velhos tempos da Hollywood clássica o “diretor de segunda unidade” era uma figura menor, porém imprescindível na produção de um filme. Seu ofício era filmar trechos considerados mecânicos, acessórios, pouco ou nada criativos, que apenas servissem para amarrar o conjunto da história. Podia ser: um avião levantando voo; a tomada geral de uma cidade; um céu nublado, indicando chuva... Coisas assim.

Era muito comum em filmes de ação, mais ainda se essa ação se estendesse a campos de batalha. Os combatentes poderiam ser os índios e a cavalaria americana, ou os nazistas e os aliados, ou os gregos e os troianos... Tanto fazia.

Vejam bem: mesmo com centenas ou milhares de figurantes na frente da câmera, tais cenas, normalmente, não eram filmadas pelo diretor principal – aquele cujo nome aparecia nos créditos do filme. Não. Ficavam ao encargo do nosso diretor de segunda unidade.

Quantas cenas de batalha nos filmes de Cecil B. DeMille, Raoul Walsh, Howard Hawks, Michael Curtiz ou mesmo de John Ford, não foram rodadas na ausência deles, apenas vistas depois em salas de montagem, onde eram “editadas” para caber bem no fluxo narrativo do filme.

Um empregado da Companhia com função bem particular, o diretor de segunda unidade não tinha direito a crédito, e, em muitos casos, mal era conhecido do pessoal da produção. Até porque as suas filmagens eram, muitas vezes, rodadas fora de Hollywood - e não necessariamente ao mesmo tempo da produção.

Devidamente apresentado o diretor de segunda unidade, vamos à questão: por que dei a esta matéria o título de “escritor de segunda unidade”?

É que vivo sempre comparando cinema e literatura, e fico me indagando como poderia ser útil, no âmbito literário, um profissional desses, que ajudasse o romancista a não perder tempo com trechos meramente informativos, ou, se fosse o caso, com longas descrições de batalhas, pois ele mesmo as escreveria.

Convenhamos: todas aquelas tediosas descrições de fachadas de casas antigas, ou mobiliários cheios de detalhes inúteis, ou de paisagens intermináveis, teriam, se feitas por outrem, facilitado a vida de – digamos, Tolstoi, Sthendal, Balzac, Melville, José de Alencar, Victor Hugo, e até mesmo Proust.

Pois bem, se existisse mesmo esse tipo de profissional no âmbito literário, acho que eu mesmo iria começar a me programar para escrever um belo e longo romance. Já que não seria um romance de guerra, o meu escritor de segunda unidade ficaria responsável pelas longas descrições das paisagens, das fachadas de residências, e da rotina dos personagens, coisas que me aborrecem só de pensar em fazer.

Aliás, para o meu escritor de segunda unidade imagino um monte de funções com mais minúcias do que a do seu colega cinematográfico. Por exemplo, arranjar um título para o romance a ser escrito, como se sabe, coisa muitas vezes mais difícil do que escrever o próprio romance. Inventar os nomes dos personagens também poderia ser muito útil, nomes em que os futuros exegetas da obra pudessem descobrir relações com a temática abordada.

Mas, um serviço adicional, com direito a pagamento extra, que eu iria querer do meu escritor de segunda unidade seria o seguinte: seria o de transmudar minhas pobres e insossas frases prosaicas em construções metafóricas, cheias de belas imagens que dessem ao texto alguma vitalidade, e se possível algum encanto.

O perigo seria, pronto o livro, o meu escritor de segunda unidade reivindicar uma coautoria.

Ou, pior, a autoria completa.

Em tempo: como não pretendo escrever romances, estou aceitando o trabalho de um escritor de segunda unidade para melhorar minhas crônicas. Pago bem.

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