sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

No tempo em que fui a São Paulo

cleudimarferreira

Paraíso, Zona Sul de São Paulo. Foto: Patrícia Figueiredo/G1

No final da primeira metade dos anos 1980, o Brasil ensaiava a própria respiração depois de anos de silêncio imposto. A ditadura ainda rondava, mas já não assustava tanto como antes; havia fissuras no concreto armado, duro do regime militar, e por elas escapavam, mesmo sem a total liberdade que todos queriam, músicas, desejos, rebeldias, caras pintadas e gente nas ruas.

Sim, a juventude desejava as ruas, necessitava de som alto, de rock and roll, queria viver, ter um futuro. E eu, aos 22 anos, desejava apenas viver - acreditando que viver era ir desbravar, aventurar. Achando que qualquer estrada, era o caminho ideal para felicidade e que resolvia tudo e, nela, estava a libertação para vida.

E fui sem lenço, sem documentos. Com a convicção ingênua de que São Paulo era um portal, seguido de uma ponte confiável para Terabítia. Por isso deixei o sertão, o calor conhecido, os rostos familiares, e atravessei o país como tantos nordestinos fizeram antes de mim, carregando sonhos na bagagem invisível que eu levava. São Paulo não era só uma cidade: era uma ideia que daria certo para qualquer um e, porque não, para mim!

Já em solo da grande metrópole, a realidade me encontrou cedo, às quatro e meia da manhã. Passei a encarar o frio paulista - um frio que não perdoava e, não perdoa - cortando o corpo, enquanto a cidade ainda dormia, silenciosa, cinza, indiferente. 

Eu caminhava a pé por entre as vertigens da garoa e, trechos de cerração fechada que escondia os arranha-céus. Encarava esse encharco frio porque dinheiro para mim era coisa raro que não chegava nunca e, esperança que andava comigo, não pagava passagem.

De fábrica em fábrica; de portão em portão; preenchia fichas, repetia meu nome, oferecia minha juventude como quem oferecia fé, em troca de um emprego que nunca vinha. O país atolado na crise, com a inflação chegando aos 60% ao mês, o crescimento encolhia, não chegava a todos e nem passava por mim.

Suportei seis meses tentando caber numa cidade que parecia grande demais para quem vinha do sertão. Querendo gostar de uma cidade que não queria gostar de mim. Um em vão período aprendendo que o concreto também cansa; que a multidão pode ser solitária, e que o sonho, quando não encontra chão, pesa demais e fica difícil de conduzir.

Quando voltava, por volta das duas da tarde, o corpo vinha antes e a fome logo atrás. Mas havia uma salvação simples: uma panela de baião de dois com almôndegas ao molho da minha tia Francisca. Aquela comida não era apenas alimento; era afeto quente; era um pedaço do Nordeste resistindo dentro da metrópole. Minha tia, sem saber, me devolvia forças todos os dias.

Mas os sonhos nem sempre sobrevivem ao mundo real. E São Paulo, apesar das promessas, não me quis e, a volta não teve glamour. Foi na boleia de um caminhão - uma generosa carona de um amigo do meu pai, fez eu cair na real. Estrada longa, poeira, silêncio e pensamentos demais que não cabiam na minha bolça de couro.

Sem emprego; voltei sem dinheiro; sem perspectiva imediata, como se não soubesse o que fazer adiante - mas voltei inteiro. Trouxe comigo a minha máquina de escrever Olivetti, fiel companheira; a bolsa de couro atravessada no peito; a sandália de rabicho nos pés; e um acervo invisível de poemas escritos entre o frio, a espera e a desilusão. A cidade não me deu trabalho, mas me deu palavras, me deu poesia.

Era um tempo de novidade no ar - as rádios FM. Elas surgiam com força total como símbolo de modernidade, falando direto com a juventude, rompendo o tom sisudo das AMs. Em São Paulo, elas eram muitas, e no 'dial' parecia pulsar a liberdade.

Rita Lee reinava absoluta. Lança Perfume explodia nas emissoras FM e AM. Era o hit das ruas, estava nas cabeças de muita gente. Era a trilha sonora de um país que queria esquecer o medo e aprender a dançar outra vez. A “titia Rita” nos ensinava, sem pedir licença, que viver também podia ser irreverência e liberdade.

Voltei para Cajazeiras diferente. Não derrotado - apenas atravessado pela experiência. Amadurecida à força, aprendi que ir, é necessário ter coragem e, voltar, precisaria ter mais ainda. A aventura não deu certo, mas deixou marcas profundas, experiencia e aprendizado.

Descobri que sonhar custa caro; que tentar, dói; e que voltar, também exige resiliência. Aprendi, sobretudo, que há viagens, às vezes, quando não nos levam aonde queremos, mas nos transformam em possíveis caminhos.

E talvez tenha sido ali, naquele ir e voltar, que eu tenha descoberto que nem toda viagem é para ficar. Mas que algumas são apenas para ensinar o que devemos aprender da vida. Assim sendo, comecei a entender que alguns sonhos não são para serem vividos - são para serem concretizados.

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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

O Lugar da Fé nas Casas do Sertão

franccneto
 

Ao revisitar minhas memórias de infância no Alto Sertão da Paraíba - entre Catolé do Rocha, o Pilar e o Cajueiro - descubro que a religiosidade nunca foi para mim uma doutrina, mas um ambiente. Ela se apresentava não como discurso, mas como presença silenciosa, especialmente nas casas simples da zona rural, onde quase sempre havia um quadro do Sagrado Coração de Jesus pendurado na parede principal. Aquela moldura oval envelhecida parecia fazer parte da própria arquitetura emocional da casa.

Essas imagens não eram apenas objetos decorativos: funcionavam como uma espécie de eixo espiritual da família. As rezas, as promessas, os velórios, os encontros, tudo ocorria sob o olhar daquela figura que, para mim, menino, emitia um mistério difícil de traduzir. Esse mistério não estava no dogma em si, mas na forma como as pessoas acreditavam, no modo como a fé organizava o cotidiano e oferecia uma dignidade silenciosa a vidas tão marcadas por desafios.

Nas caminhadas com meu pai pelos sítios, aprendi a observar essa relação entre imagem e existência. Meus avós, tanto do lado paterno quanto materno, tinham uma devoção naturalizada, que não se impunha, apenas irradiava. Havia ali uma ética da fé - discreta, forte, sem necessidade de explicações. E mesmo quando, anos depois, me declarei ateu, nunca deixei de respeitar profundamente essa forma de acreditar. Talvez porque eu soubesse que ela abrigava algo essencial: uma maneira de enfrentar a vida com coragem, sentido e esperança.

Nos últimos dez anos, minha própria visão de Deus se transformou. Hoje não dependo de sistemas dogmáticos nem de fronteiras religiosas. A ideia de Deus que me acompanha é mais ampla, mais ligada ao humano, ao natural, ao que existe de melhor no gesto e na convivência. Cristo, por sua vez, permanece para mim como uma figura central na história da humanidade - não pela imposição religiosa, mas pelo exemplo ético. Uma síntese de dignidade, cuidado, transformação e amor ativo.

É curioso perceber como, ao adquirir recentemente uma fotografia antiga do Sagrado Coração - semelhante àquelas que marcaram minha infância - reencontrei não apenas um objeto, mas um elo. Um elo entre a simplicidade das casas sertanejas, a espiritualidade popular e meu próprio percurso interior. E compreendi que certas imagens não nos abandonam: elas permanecem porque guardam um significado que evolui conosco.

Não se trata mais de devoção no sentido tradicional. É reconhecimento. É memória. É a certeza de que, no fundo, toda fé - seja ela qual for - expressa um desejo humano legítimo: o desejo de transformar a si mesmo e o mundo ao redor. E isso, parceiro, continua sendo tão necessário quanto naquela parede antiga de barro.

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sábado, 29 de novembro de 2025

CONVERSAS DE CINE ÉDEN: A Luz do Apollo Sobre Dom Zacarias e o Cinema de Cajazeiras

cleudimarferreira

(o jovem) Dom Zacarias Rolim de Moura. Concepção IA Gemini

As boas intenções, aparecem em um determinado lugar, quando se tem por trás pessoas iluminadas, provocadoras de atitudes positivas. A esse respeito, conclama a oralidade, que a história de algumas cidades pode apresentar formas diferentes de nascimento. No caso de Cajazeiras, o que todos sabem é que ela nasceu a partir de uma escola. Essa é a versão oficial. Mas há cidades por aí a fora que suas histórias podem revelar duas versões. Uma, a de que surgiu simplesmente das primeiras alvenarias fincadas no seu chão, que foram erguidas com suas ruas e edificações; a outra vem do pensamento popular, de que simplesmente nasceram com uma luz que um dia as atravessaram, deixando feitiço e brilho intenso nos seus solos.
 
Não sei se Cajazeiras foi tocada por esse romantismo barato. Mas, baseado esse ponto de vista, a cidade teve de fato, o privilégio raro de renascer pela luz que escapava das janelas estreitas de três salas de cinema, mais especificamente, duas, o Cine Teatro Apolo XI e o Cine Teatro Pax, ambos sonhados, erguidos e guardados com o zelo de um pai por seu filho mais querido. Nesse caso, o pai, o sensível Bispo Dom Zacarias Rolim de Moura, um homem que dividia com sabedoria o coração entre o púlpito e o projetor, ou seja, a vocação para o eclesiástico e a paixão pelo cinema. Essa dualidade do bem, o fez um bispo cinéfilo que ousou construir não só igrejas, mas cinemões no centro do sertão paraibano.
 
Algumas pessoas, principalmente as mais próximas, costumava dizer que Dom Zacarias tinha uma alma inquieta - dessas que não cabem só nas obrigações episcopais. Era bispo, sim; disciplinado, sim; dedicado, sim, a fé religiosa; homem de oração, claro. Mas havia nele uma pulsação voraz de menino: o encantamento pelas histórias projetadas nas grandes telas de cinema. Essa atração, talvez viesse de muito longe. De duas cidades do vizinho estado do Ceará; Umari e Iguatu ou de alguma tarde perdida em que ele, então adolescente, viu pela primeira vez o milagre de uma luz tremida transformando-se em rostos, aventuras e paisagens. Seja como for, essa fagulha ficou nele, e ardeu silenciosa até o dia em que se tornou chama.
 
Quando assumiu a diocese de Cajazeiras, muitos sob a ótica da tradição, esperavam dele as obras características de um bispado: escolas, centros educacionais, presença cativa nas festas religiosas, pregações, peregrinações pelas paróquias da diocese e uma destacada participação na vida social da cidade. Tudo isso ele fez. Mas ninguém imaginava que, naquela mente, sempre três passos adiante, germinava a ideia de instalar dois cinemas comerciais, estruturados com ambição dos que haviam na capital, mas fincados no coração de Cajazeiras.
 
Das duas salas instaladas, a sua joia rara, o Cine Teatro Apolo XI - e o nome, por si só, já anunciava que Dom Zacarias não era de pensar pequeno, fazia parte de um complexo de comunicação, de construção arrojada, moderna para os padrões da época, dotado com equipamentos de última geração, que incluía uma emissora de rádio - a Rádio Alto Piranhas e um cinema - o Cine Teatro Apolo XI. 

No caso do Apolo XI, a sala apresentava fachada imponente, cabine de projeção ampla, com ar condicionado gelado como uma noite de inverno no hemisfério sul. Dois projetores enormes, lustrosos, que davam orgulho só de olhar, da melhor marca que havia na época. A sua tela panorâmica se destacava pela amplitude retangular. O auditório espaçoso com camarotes no seu mezanino, lembravam os cines-teatros dos grandes centros.
 
Havia ainda no auditório uma cadeira cativa. A mais vazia de todas as cadeiras lotadas. Aquela cadeira que ninguém ousava ocupar, nem por engano. O cinema podia estar abarrotado, gente sentada até no chão; encostada nas paredes laterais; gente entrando ainda com o tremor da fila - e lá estava ela: livre, esperando o bispo. Era como se o próprio Apolo ficasse em silêncio diante dela, aguardando a autoridade de quem lhe dera o sopro de vida.
 
Os frequentadores do Cine Teatro Apolo XI, todos sabiam que, quando estreava um filme novo, Dom Zacarias vinha certeiro no primeiro dia de exibição. Ele era pontual, vinha ver o filme, como quem cumpre um ritual sagrado. Chegava discreto, mas sua entrada tinha o efeito de apagar murmúrios. Sentava-se no assento proibido e, quando a luz da cabine acendia pela fresta, o cinema inteiro parecia respirar com mais calma.
 
Mas o religioso não vivia só para o seu cinema preferido - o Cine Apolo XI. No outro extremo da cidade, na direção sudoeste, ele criou o Cine Teatro Pax, mais popular, de características ruidoso pela ação da euforia das crianças nas sessões de domingo, mais vivo e frenético com as aventuras de Peter Pan

Instalado no antigo prédio carmelita, o Cine Pax recebia a população cinéfila da zona sul. Os meninos curiosos, os casais apaixonados, os que vinham pela diversão pura. Ali, fora a programação da noite, ele exibia nas matinês de domingo à tarde, filmes de aventuras, faroestes, desenhos da Disney, produções de Mazzaropi, que marcaram a infância de gerações. 

A sala do Pax era menor do que a do Apolo XI, com a cabine projeção apertada, desconfortável, muito quente e abafada. Diferente do Cine Apolo, não havia ar condicionado, apenas um pequeno ventilador ajudava na ventilação dos projetores e dos operadores. Mas o Pax era o point de todos nós e, as suas acomodações, embora improvisadas, adaptadas, sem muito conforto, praticamente não era sentidas pelos seus frequentadores.  
 
O afeiçoado Dom Zacarias conhecia seu público como um dono de circo conhece a alma da plateia. Viajava no ônibus da Viação Gaivota, todo fim de mês a Veneza brasileira - Recife. Chagando lá percorria pacientemente as distribuidoras de filmes da capital pernambucana, observando catálogos; lendo sinopses; escolhendo os filmes que melhor adequasse a programação dos seus cinemas e ao perfil dos seus frequentadores. Depois, assinava os contratos de locação com essas empresas, definindo com cuidado o que Cajazeiras veria nas próximas semanas. Era assim, uma das partes da rotina do nosso bispo cinéfilo.

Dos muitos momentos, que a convite de Cícero Alves, atravessei o corredor silencioso do Palácio Episcopal e cheguei ao gabinete de Dom Zacarias, vi um homem que parecia estar mais centrado nas atividades dos dois cinemas do que nas suas obrigações primarias de líder religioso, responsável pela orientação de seus paroquianos. Esse comportamento se mostrava no instante que estávamos lá, quando chegava no seu birô pessoas da diocese. A atenção às demandas dos cinemas, trazidas por Cícero, o bispo escutava com mais alma, como mais cuidado, olhava com mais interesse e respondia com mais ênfase, porém essa cena não se repetir quando outras questões eram trazidas por representantes do clero. 

No seu tempo, sendo uma fração no mundo seleto dos exibidores, o Bispo não se curvou às modas do mercado cinematográfico. Nesse período, quando o Brasil, por exemplo, mergulhou na era das pornochanchadas, cinemas de norte ao sul do país, apelaram a esse tipo de bilheteria. Ele - firme, silencioso, convicto - recusou. Não por moralismo agressivo ou por conservadorismo provinciano; mas porque acreditava na dignidade do cinema, na força que a sétima arte tinha para educar, instruir e maravilhar pessoas. O que fez Dom Zacarias, segurou com cautela o fantasma da crise que se avizinhava, aguentou até onde pode.
 
Quando viu a coisa piorar de vez, com os filmes pornôs tomando conta das telonas, e assim, quando a onda do pornô engoliu quase todas as salas do país, preferiu fechar suas salas a empurrar de goela abaixo no seu público um tipo de filme que, segundo ele, era o fim dos cinemas e não acrescentava nada aos seus fiéis expectadores
 
Assim, envolvidos nesse ponto de vista, os seus cinemas silenciaram. Não por falência, mas por fidelidade a um princípio. E o que ficou? Ficou a lembrança. Ficou a luz. Ficou o gesto de um homem que, no sertão profundo, tratava a cultura não como lixo, mas que ousou provar que cultura também não era luxo e sim, necessidade. 

As lembranças dos seus cinemas, ficaram no eco das sessões lotadas; da sua cadeira cativa vazia. No cheiro das novas fitas de um novo filme, nas risadas altas nos desenhos sendo exibidos no Cine Pax. Ficou evidente na memória de um tempo em que Cajazeiras tinha, graças a um bispo apaixonado por cinema, duas janelas para o mundo.
 
Dom Zacarias não instalou 'salas educativas', nem tão pouco 'cinemas paroquiais', daqueles fincados em uma sala específica de uma unidade eclesiástica, destinada ao doutrinamento de religiosos da diocese. Eram cinemas de verdade, grandiosos, ambiciosos espaços de exibições comerciais - e ainda assim guiados por um coração que conhecia mais de humanidade do que de lucro.
 
E talvez seja essa a imagem final que melhor o define: um bispo que, entre sermões e projetores, construiu para seu povo não apenas templos de oração, mas templos de imaginação e magia. Um homem que acreditou que Deus também morava na luz que atravessa a escuridão - inclusive na luz de um filme recém-projetado sobre o mormaço de uma noite quente, como sempre foram as noites em Cajazeiras.

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terça-feira, 25 de novembro de 2025

O Cabaré das Mangueiras

 cleudimarferreira

Ruinas do Cabaré de Lilia ou Cabará das Mangueiras. Imagem retirada do Google Maps


Cabaré das Mangueiras não era e, nunca foi, o letreiro principal em destaque na sua fachada. O nome oficial do peixe que era vendido por Lilia, chamava-se Dallas Motel - anexo chamativo ao local ou parceiro, escrito em letras grandes, fonte areal, com formato itálico, acrescido de singelo sombreamento, estilo comum das legendas em pontos comerciais ou em equipamentos desse gênero instalados nos beiços das estradas desse país. 

Eclético, ambiente versátil, a área de lazer e entretenimento masculino, contava com atração feminina de livre escolha; quartos equipados - adaptados para relaxamento das tenções; serviço de bar completo com música ambientada; pousada multiuso e outros atrativos conforme a imaginação do cliente. Era mais ou menos assim o ambiente da Dona Lilia. Um espaço atraente, ordinário, que ainda está no subconsciente da população de Cajazeiras. Suas lembranças foram regadas até aqui e, o seu crescimento popular entre todos, se tornou evidente, através das histórias vividas e, outras, através da oralidade de quem viveu certa vez, o dia a dia desse local.

Hoje, a sua imagem nos remete ao passado, já que as ruinas do lendário cabaré, é ainda, o que melhor espelha esse momento. A existência das lembranças dos amores perdidos da cidade que não dormia nunca. Através das cortinas cintilantes do seu salão principal e, dos chiados das radiolas, sucumbia sempre a máscara da razão, do que foi eternamente a sua função.

Um tempo que ficou obsoleto, que foi perdendo paulatinamente seus espaços preciosos, para as redes sociais, depois do advento da Internet e os aplicativos para smartphones. Agora não é mais ponto fixo ou via Sedex, é telepaticamente virtual. Lembro muito bem, que certa vez a convite de amigos, meu pai foi uma pescaria em um açude que ficava nas imediações dessas instalações e, me levou junto com ele. 

Nem eu, nem ele, sabia que para chegar no local da pescaria teria que passa ao lado da estalagem de Lilia. Em direção a pescaria, quando íamos passando de lado desse mundo de prazer e amor, um gaiato do grupo sugeriu que todos parassem no local para tomar uma cervejinha.

A tensão já foi logo se apoderando de mim. Meu pai tentou evitar essa parada, mas a maioria como sempre, é sempre a vencedora. Paramos no lugar corretamente arborizado, apoderamos de duas mesas conjugadas debaixo de um sombreiro frondoso. Logo um grupo de mulheres prestativas e educadas vieram a nós para nos atender.

Depois de umas três cervejas, começou o atiramento de alguns do grupo e, as meninas com suas cordialidades naturais de sempre, reciprocamente, deram seus ares das graças, começaram a fazer colo nas coxas de todos que estavam naquelas mesas.

Para mim um adolescente, tudo aquilo era estranho e novidade, até que uma veio e sentou no colo de meu pai e começou brincar com o velho, fazendo cafuné na cabeça dele e dando alguns beijos no seu rosto. Vige maria, eu saí de perto cheio de remoço e com a consciência pesada.

Meu pai ficou encabulado e, aí, a moça deixou o seu colo. Daí veio a piada de Zé da Onça com a conivência de Zé Nilo da Silva: Zé, tu também... para onde vai tem que trazer esse teu filho! Meu pai respondeu já com o volume lá em cima: - E eu lá sabia que ia passar no Cabaré de Lilia! Logo em seguida desfizeram a mesa, pagaram as despesas e, seguimos direto para a tal pescaria.

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sábado, 8 de novembro de 2025

Não vi erros em "O Agente Secreto"

cleudimarferreira

O cinema brasileiro, de vez, amadureceu definitivamente. Hoje é um pomar carregado de frutos maduros, adocicados, que nos faz sentir orgulho quando vamos ao cinema. Continua com a nossa cara de sempre, sem perder a essência, porém moderno em consonância com o que há de melhor nas produções no mundo. Portanto, viva o cinema brasileiro!
Estava ansioso para ver “O AGENTE SECRETO”. Isso por que, os agraciados com as avant-premières do filme de Kleber Mendonça, picharam as redes sociais com textos eloquentes, elogiando o filme, criando uma expectativa nos que tiveram que esperar a estreia oficial ontem, dia 6.
Não transmutei a minha ansiedade, sendo o primeiro a chegar; a bater na porta do Cine Banguê para ver o filme na tarde e noite de ontem. A minha ausência foi em razão de ter dado choque cultural com o show de Toquinho e eu não poderia perder a apresentação do cara amigo/parceiro de Vinicius.
Hoje, mesmo enfrentado o complicado trecho da BR230, cheguei a tempo de ver o filme na sessão das16 horas. Fui ver, procurando os pontos falhos, os momentos conflitantes no roteiro, que pudesse ser passivo de observação crítica (talvez) ou algo assim, no trabalho do diretor pernambucano. Mas não a encontrei nenhuma e, acho, que quem estava comigo no Cine Banguê, também não encontrou.
O longa é prefeito! é lindo, porque espelha uma história contundente de uma época de um Brasil perdido, violento. É retrô, uma vez que mostra uma cidade-Recife dos anos 70, em movimento, em transformação. É realista, por que tudo mostrado, tem fidelidade com a vivência social, até certo ponto romântica, de uma década intermediaria que sonhava com liberdade.
Não sou crítico de cinema, logo não vi falha no filme! Pode ser que apareça um analista com página em folhetim, que ache algo de errado no filme. Eu não achei e nem vi! É bem acabado, esteticamente correto. Acho que se não tiver na premiação do Oscar de 2026, um filme a altura de O AGENTE SECRETO, facilmente teremos mais uma estatueta entre nós, para fazer par com “Ainda Estou Aqui" dirigido por Walter Salles.
O filme é multifacetado com cenas empolgantes. Logo no início, a cena do posto de gasolina, minuciosamente dirigida com perfeição, colocando frente-frente dois atores experientes; o protagonista (que dispensa comentários) e o talento do ator paraibano Joálisson Cunha, no encontro real dos dias contemporâneos, onde o sentimento pela vida humana parece não ter sentido. Perfeito, nem no cinema americano, durante o movimento Nova Hollywood que ousou fazer mudanças profundas nos filmes hollywoodiano, vi algo parecido.
A cena que mostra a cabine de projeção do Cine São Luiz, com os projetores a carvão em ação, é realismo puro. Vivi isso nos cinemas da minha terra. A direção de arte, caracterizada pelas cenas mostradas em toda produção, cito com destaque a que mostra, em plano aberto os carros de época; e a sequência dos vários fuscas com cores variadas passando em uma das pontes do Rio Capibaribe, parece real, nos fez voltar ao passado. Muito bacana.
Portanto, nosso cinema cresceu, emancipou-se em qualidade técnica e produção. Hoje somo gigantes. Saímos daquela condição de coitado subserviente das estéticas impostas pelos grandes estúdios no mundo. Mas para que a peteca continue nas alturas, sempre é bom mais investimentos; mais incentivos; mais leis que garanta seu brilho intenso nos olhos de quem queria, no passado, o seu fracasso, a sua desgraça.
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domingo, 19 de outubro de 2025

Aos mestres, com luta

Oficina de desenhos em quadrinhos ministrada numa escola pública

Cajazeiras, dita por todos de: 'terra do saber'; conhecida como 'a terra que ensinou a Paraíba ler'; no mês em que se comemora dia da única folga do professor - durante o ano, o 15 de outubro, nada melhor do quer ler essa bela opinião, escrita por uma professora universitária, Mariana Moreira, que também é escritora e experiente jornalista.

porMariana Moreira

A lição do mestre Paulo Freire foi minha mais frequente reflexão neste dia 15 de outubro, quando se celebra o Dia do Professor. Ele nos ensina que: “É fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”.

E como esta lição, embora singular e singela, tem um aprendizado difícil e, muitas vezes, obscurecido pelos interesses políticos e mercadológicos. Interesses que, mascarando a profissão docente como “missão”, lhes atribui adjetivos e qualificações “naturalizadas”. Ou seja, o professor é aquele que, renunciando às necessidades básicas de sobrevivência, se dedica ao ministério “sagrado”, onde: “Ensinar é semear com amor e colher com sabedoria”. “Educar é um ato de amor que muda vidas todos os dias”.

Assim, o Dia do Professor é apenas e tão somente uma pequena celebração na escola, onde caixas de chocolate, pequenos presentes e frases de efeito lacrimosas são pronunciadas sem quaisquer contextualizações de sentido e significado.

Não interpretem esta minha posição como antipatia ao professor e às celebrações que o dia 15 de outubro enseja. Sou docente desde 1993 e, sinceramente, me envaidece e estimula os afagos e reconhecimentos que recebo de ex-alunos e de pessoas outras que identificam nosso trabalho como importante para a transformação da sociedade e das mentalidades.

O que me inquieta é a transformação de uma profissão em função natural, ou biológica, do ser humano. Portanto, devendo ser exercida em quaisquer condições.

E, trazendo para o cenário do mestre Paulo Freire, essa inquietação é traduzida na “distância entre o que se diz e o que se faz”. Uma distância que poderia ser visibilizada, por exemplo, quando professores, em luta por melhoria de condições de trabalho, de valorização profissional, de remuneração decente, realizam greves e outras manifestações políticas. São sempre categorizados como inconsequentes, irresponsáveis, que estão impossibilitando os alunos de terem acesso à educação e ao conhecimento. Uma postura que não enxerga, ou que, intencionalmente, busca esconder: os baixos salários, a sobrecarga de trabalho, o acúmulo de funções para assegurar os ganhos mínimos à sobrevivência, o adoecimento docente provocado pelo estresse e pela sobrecarga, sobretudo para as docentes que, historicamente, ainda carregam a herança da dupla jornada.

Ora, mas nada disso importa, pois “ser professor é tocar o futuro com as próprias mãos”! Mesmo que estas mãos estejam calejadas de trabalho exaustivo, cobrança inúmeras, dupla jornada, depressão e outras modalidades de adoecimento causadas pelo exercício da atividade docente.

Afinal, “quem ensina com o coração nunca é esquecido”.

Essa lembrança não me interessa. 

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domingo, 12 de outubro de 2025

A antiga cadeia de Cajazeiras também fazia parte da história da cidade.

porCleudimar Ferreira

Antiga Cadeia. Demolida, hoje no local é a Caixa Econômina Federal

O sentido de preservação pode estar condicionado a uma série de fatores. No meio desses, um, me parece sobrepor-se aos demais: é o que está ligado à formação do nosso caráter, percurso que se faz, onde os valores que adquirimos, vão sendo moldados conforme a influência cultural social que somos submetidos.

Só se preserva quem entende o valor sentimental, histórico, dos símbolos deixados pelos nossos antepassados. Muitos deles, representados pelos monumentos e fachadas que, envelhecidos, estacionados no tempo, são registros sólidos, ainda vivos, da nossa história e da vivência das sociedades em um determinado lugar.

A cidade de Cajazeiras, com mais de 162 anos, fincada no coração do sertão paraibano, não pode se dar ao luxo de ignorar o valor dos seus edifícios antigos, pois o pressuposto de preservação de seus habitantes está intrinsecamente conectado ao seu traço distintivo e à sua capacidade de reconhecer a própria história.

Fachadas remotamente imponentes e estruturas hoje silenciosas, como as do centro comercial e o entorno da Praça Nossa Senhora de Fátima, não são meros amontoados de tijolos envelhecidos; são as evidências sólidas e vivas de onde a cidade começou, de como as famílias sertanejas se estabeleceram e, do florescimento nas terras das cajazeiras, dos primeiros lampejos de sua cultura, sua arte e sua educação.   

Preservar esses prédios significa manter de pé os registros emocionais e arquitetônicos de uma sociedade que valoriza a luta e a conquista de seus antepassados. Se a atual geração demonstra desinteresse ou permite a demolição desses ícones, visando fagulhas econômicas e financeira, ela, na verdade, sinaliza uma falha no entendimento do seu próprio valor histórico, fragmentando a memória coletiva e rompendo o elo com as bases do seu desenvolvimento educacional e cultural.

A conservação desses monumentos se torna, portanto, um ato de caráter, uma afirmação pública de que a identidade cajazeirense é forte, respeita seu passado e garante que a história não se apague para as futuras gerações. É o que se espera, no mínimo, da sua população, sobre esta questão, principalmente dos que detém a posso desses equipamentos.

Porém, ao longo dos anos não só Cajazeiras, mas muitas cidades do interior paraibano, tem colocado em discussão o tema preservação como uma das prioridades das suas demandas, algumas com sucesso nas suas políticas preservacionistas, com avanços significativos, outras menos e, algumas com quase nada há demostrar.

Cajazeiras tem patinado por essa última frase. Ou seja, tem feito um chá-café nesse quesito, de difícil identificação no que foi preservado, já que alguns dos seus prédios antigos mantidos ainda em pé, passaram por modificação grotescas nas suas fachadas, fazendo o contrário de cidades como Pombal, que tem mantido suas velhas edificações em pé, a exemplo do antigo prédio da cadeia pública, originalmente preservado, tal como foi construído entre os anos de 1847 e 1848.

Em Pombal a longeva cadeia rompeu o tempo, tendo suas instalações totalmente mantidas sem a interferências de ajustes, adequações ou reformas que agredisse sua arquitetura primitiva, sendo transformada pelo poder público em um museu temático, com objetos que conta a história do seu povo. Uma confirmação que quando no poder público tem pessoas de caráter comprometida com a história dos que construíram a cidade, a memória do município estará sendo garantida para as futuraras gerações.

Cajazeiras nesse contexto, tem percorrido o caminho inverso, um tanto sinuoso ou não muito claro. A nossa antiga cadeia pública estrategicamente plantada no centro convergente da cidade, que se estivesse sido preservada, estaria hoje com mais de cem anos, foi demolida para dar lugar a agência da Caixa Econômica Federal.

O poder público, virtual dono do antigo imóvel, devia ter doado ao banco outros espaços públicos que havia no centro da cidade, mas preferiu sacrificar um prédio que, se não representava a beleza das energias positivas, também não trazia os aspectos negativos para Cajazeiras, pois no seu interior, fatos importantes da história sertaneja, acorreram e, por conta disso, a remota cadeia deveria ter sido contemplada com o referendo da preservação e não da demolição.

Para atiçar a indiferença na memória do atraso cajazeirense, basta lembrar que na antiga prisão demolida, algumas figuras ilustres no mundo fora da lei, que estiveram em conflito do a justiça, foram hóspede em alguns quartos da velha cadeia. O famoso Moreno, cabra de lampião, remanescente da chacina de Angico que de cabe a vida de Virgulino Ferreira da Silva, esteve preso por um mês em uma das suas celas. 

Essa afirmação não é ficção, o próprio cangaceiro Moreno asseverou, em depoimento a Tv e Jornal Diário do Nordeste, antes de morrer. Tem tudo gravado em áudio e vídeo e, em matéria inteira, completa, nos arquivos da Tv e nas páginas desse importante diário cearense.

Outro fato, não tão registrado quanto o caso Moreno, mas que merece destaque pelas circunstâncias de como foi ocorrido; que colocou a velha prisão cajazeirense no foco da história de uma época de terror nos sertões paraibano, trata-se da prisão do cowboy-cangaceiro Chico Pereira. 

A história de fato e documental, conta que Chico foi preso pelo tenente Manoel Arruda na entrada do Cine Moderno em Cajazeiras. Horas depois, Chico Pereira foi recambiado para a cadeia pública de Pombal. Provavelmente, Chico, como medida de segurança e proteção, antes de ser levado para esta cidade, deve ter ficado algumas horas detido em algumas das celas da velha prisão de Cajazeiras.

Esses fatos, fora outros que ocorreram que não convém mencionar nesse texto, já somaria e, era o suficiente para o poder público de nossa cidade, na época da decisão pela demolição da velha cadeia, ter repensado e preservado esse importante equipamento, símbolo de um passado da história do município de Cajazeiras.

A manutenção do prédio em pé, poderia servir como sede de um equipamento cultural, com a transformação de suas estruturas em lojinhas e oficinas de artesanato. O seu pátio podia ter sido convertido em um anfiteatro dotado de arquibancadas, palco e área de convívio social.

Mas não foi isso que aconteceu e prédio da velha cadeia, foi sumariamente demolido sem dó e piedade, para dar lugar a agência da Caixa Econômica Federal, que hoje, estuda meios de construir um novo prédio, por achar que o atual, que um dia a velha cadeia, não suporta a demanda de serviços prestados pelo banco.

Ou seja, a falta de senso e de planejamento adequado do poder público ao longo do tempo, para com os prédios, conjuntos de fachadas, ruas e artérias em Cajazeiras, que compõe o chamado sítio histórico da cidade, tem produzidos casos como esse da antiga cadeia, onde o prédio teve que ser demolido, para dar lugar um banco e agora, anos depois, o banco estuda meios de deixar o local onde foi o presídio, por achar que esse local não mais oferece condições de acomodar o volume de serviços do banco. 

Nesse caso, a história que no passado tinha ficado no prejuizo, continuará no prejuizo, sem poder ser reparada, recontada. E o pior, a ação mal planejada que destrui o prédio, feriu do Código de Postura do Municipio, violou o Plano Diretor da cidade e, os sentimentos de uma parte da popolação, que defendo a preservação de sua história. Coisas que só existe em Cajazeiras.

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