Foram
os vaqueiros os primeiros heróis dos sertões, aqueles que, sem mapas ou
bússolas, rasgaram a vastidão do Nordeste com o olhar firme e os passos
determinados. Antes mesmo da chegada dos grandes sesmeiros, eram eles os
desbravadores, os verdadeiros colonos da terra selvagem, que se embrenhavam
pelas matas densas e desconhecidas, muitas vezes sem farinha para o pão, sem
sal para temperar a escassa comida do dia. Cada refeição era uma conquista,
cada abrigo improvisado, um ato de coragem.
Aprenderam
com os índios a arte de sobreviver. Das raízes, do mel e dos frutos nativos,
tiravam alimento e remédio; da mata, tiravam força e esperança. Cada árvore,
cada riacho, cada pedra do chão carregava um ensinamento, uma lição de
resistência. Era um mundo bruto e generoso ao mesmo tempo, e o vaqueiro sabia
que para domá-lo era preciso respeitá-lo.
Com o
tempo, as matas foram ficando para trás. Os vaqueiros tomaram as estradas,
transformando-as em caminhos vivos, pulsantes. Tangiam rebanhos que pareciam
rios de pelos e cascos, e a poeira levantada pelos animais misturava-se à luz
dourada do sol. As feiras de gado se anunciavam por toda a região: Piauí,
Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte. A terra inteira tremia sob os
cascos dos bois e das mulas, enquanto os gritos estridentes dos vaqueiros
atravessavam vales e serras, anunciando sua passagem.
O som
dos cascos não era apenas barulho: era história escrita no chão. Em Triunfo,
uma antiga fazenda, chamada Gamelas, mudou de nome diante do tropel constante:
tornou-se Fazenda Picadas. Cada pisada profunda deixava sua marca, cada passo
do gado picava a terra com força e persistência, imprimindo ao solo e à memória
coletiva o ritmo de uma vida de trabalho, suor e coragem.
Mas os
vaqueiros não tangiam apenas bois. Tangiam também sentimentos: saudade, amor,
lembranças de casa e de pessoas queridas. E para aliviar o peso do caminho,
surgiam as cantigas, essas melodias simples, mas carregadas de emoção, que
atravessavam sertões, rios e serras, ecoando como testemunho de vidas em
movimento.
A
Estrada das Boiadas era mais que um caminho; era artéria viva que ligava o
Oeste das Espinharas à Ribeira de Santa Rosa, seguia até Milagres, Taperoá,
descia pela Borborema, alcançava Patos, Pombal, Sousa, São João do Rio do
Peixe, o Sítio Dois Irmãos, Tabuleiro Grande, Cajuí, Fazenda Boa Vista, Umari,
Icó, Tauá, Crateús, Santo Antônio do Campo Maior, Valença, Oeiras, São João do
Piauí, Picos, São Gonçalo do Amarante… e ainda parecia não ter fim. Cada parada
marcava um ponto de memória, cada amanhecer era um desafio, cada entardecer,
uma vitória silenciosa.
E no
meio desses caminhos longos, ecoava uma cantiga antiga, levada de boca em boca,
lembrança de amores e afetos:
Como
Xiquinha não tem / Como Totonha não há.
Xiquinha de Campo Grande / Totonha do Lagamar.
Xiquinha vale dez filhos / Totonha vale dez avós.
Xiquinha do Cococi / Totonha do Arneiros.
Xiquinha pra querer bem / Totonha pra acarinhar.
Xiquinha é de Crateús / Totonha é de Tauá.
Xiquinha vale uma vila / Totonha vale ela só.
Xiquinha nasceu nos Picos / Totonha em Campo Maior.
Xiquinha de Campo Grande / Totonha do Lagamar.
Xiquinha vale dez filhos / Totonha vale dez avós.
Xiquinha do Cococi / Totonha do Arneiros.
Xiquinha pra querer bem / Totonha pra acarinhar.
Xiquinha é de Crateús / Totonha é de Tauá.
Xiquinha vale uma vila / Totonha vale ela só.
Xiquinha nasceu nos Picos / Totonha em Campo Maior.
Entre
o ferro do gado e a suavidade das canções, os vaqueiros escreviam sua história
silenciosa. Cada tropeiro, cada passo de boi, cada canto ao luar era um fio
entrelaçado na memória do sertão. Eram homens e mulheres anônimos que, com
coragem, construíram caminhos e histórias, deixando para trás pegadas profundas
na terra e no coração das gerações futuras.
Eles não foram apenas trabalhadores; foram poetas, desbravadores, cronistas de uma terra dura, mas cheia de beleza e vida. Onde hoje há estradas asfaltadas e cidades em expansão, outrora ecoavam apenas os gritos, os mugidos, o trote firme dos cascos e a música simples e doce das cantigas sertanejas.
E
assim, os vaqueiros, primeiros heróis dos sertões, permanecem eternos, como se
cada passo deixasse um rastro de coragem, poesia e saudade no chão nordestino.
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fonte: argumento e roteiro José de Andrade Alves Alves