quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Estrada das boiadas, dos cascos e cantigas: os primeiros heróis sertanejos

José de Andrade Alves Alves


imagem meramente ilustrativa criada via IA
 
Foram os vaqueiros os primeiros heróis dos sertões, aqueles que, sem mapas ou bússolas, rasgaram a vastidão do Nordeste com o olhar firme e os passos determinados. Antes mesmo da chegada dos grandes sesmeiros, eram eles os desbravadores, os verdadeiros colonos da terra selvagem, que se embrenhavam pelas matas densas e desconhecidas, muitas vezes sem farinha para o pão, sem sal para temperar a escassa comida do dia. Cada refeição era uma conquista, cada abrigo improvisado, um ato de coragem.

Aprenderam com os índios a arte de sobreviver. Das raízes, do mel e dos frutos nativos, tiravam alimento e remédio; da mata, tiravam força e esperança. Cada árvore, cada riacho, cada pedra do chão carregava um ensinamento, uma lição de resistência. Era um mundo bruto e generoso ao mesmo tempo, e o vaqueiro sabia que para domá-lo era preciso respeitá-lo.

Com o tempo, as matas foram ficando para trás. Os vaqueiros tomaram as estradas, transformando-as em caminhos vivos, pulsantes. Tangiam rebanhos que pareciam rios de pelos e cascos, e a poeira levantada pelos animais misturava-se à luz dourada do sol. As feiras de gado se anunciavam por toda a região: Piauí, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte. A terra inteira tremia sob os cascos dos bois e das mulas, enquanto os gritos estridentes dos vaqueiros atravessavam vales e serras, anunciando sua passagem.

O som dos cascos não era apenas barulho: era história escrita no chão. Em Triunfo, uma antiga fazenda, chamada Gamelas, mudou de nome diante do tropel constante: tornou-se Fazenda Picadas. Cada pisada profunda deixava sua marca, cada passo do gado picava a terra com força e persistência, imprimindo ao solo e à memória coletiva o ritmo de uma vida de trabalho, suor e coragem.

Mas os vaqueiros não tangiam apenas bois. Tangiam também sentimentos: saudade, amor, lembranças de casa e de pessoas queridas. E para aliviar o peso do caminho, surgiam as cantigas, essas melodias simples, mas carregadas de emoção, que atravessavam sertões, rios e serras, ecoando como testemunho de vidas em movimento.

A Estrada das Boiadas era mais que um caminho; era artéria viva que ligava o Oeste das Espinharas à Ribeira de Santa Rosa, seguia até Milagres, Taperoá, descia pela Borborema, alcançava Patos, Pombal, Sousa, São João do Rio do Peixe, o Sítio Dois Irmãos, Tabuleiro Grande, Cajuí, Fazenda Boa Vista, Umari, Icó, Tauá, Crateús, Santo Antônio do Campo Maior, Valença, Oeiras, São João do Piauí, Picos, São Gonçalo do Amarante… e ainda parecia não ter fim. Cada parada marcava um ponto de memória, cada amanhecer era um desafio, cada entardecer, uma vitória silenciosa.

E no meio desses caminhos longos, ecoava uma cantiga antiga, levada de boca em boca, lembrança de amores e afetos:

Como Xiquinha não tem / Como Totonha não há.
Xiquinha de Campo Grande / Totonha do Lagamar.
Xiquinha vale dez filhos / Totonha vale dez avós.
Xiquinha do Cococi / Totonha do Arneiros.
Xiquinha pra querer bem / Totonha pra acarinhar.
Xiquinha é de Crateús / Totonha é de Tauá.
Xiquinha vale uma vila / Totonha vale ela só.
Xiquinha nasceu nos Picos / Totonha em Campo Maior.

Entre o ferro do gado e a suavidade das canções, os vaqueiros escreviam sua história silenciosa. Cada tropeiro, cada passo de boi, cada canto ao luar era um fio entrelaçado na memória do sertão. Eram homens e mulheres anônimos que, com coragem, construíram caminhos e histórias, deixando para trás pegadas profundas na terra e no coração das gerações futuras.

Eles não foram apenas trabalhadores; foram poetas, desbravadores, cronistas de uma terra dura, mas cheia de beleza e vida. Onde hoje há estradas asfaltadas e cidades em expansão, outrora ecoavam apenas os gritos, os mugidos, o trote firme dos cascos e a música simples e doce das cantigas sertanejas.

E assim, os vaqueiros, primeiros heróis dos sertões, permanecem eternos, como se cada passo deixasse um rastro de coragem, poesia e saudade no chão nordestino.


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fonte: argumento e roteiro José de Andrade Alves Alves