sábado, 26 de novembro de 2022

FUTEBOL NO TEMPO DE SHAKESPEARE



por   João Batista de Brito  

Nessa época de Copa do Mundo, lembro uma cena engraçada num filme butanês - sim, daquele país asiático miudinho, chamado Butão. Intitulado “A copa”, o filme contava a história de como os monges budistas tentam convencer o Dalai Lama a alugar um aparelho de televisão para assistirem aos jogos da copa de 1998.
O Santo Homem pergunta: “E o que é futebol?” E ouve dos monges que é uma luta entre dois países por causa de uma bola. Admirado, o Santo Homem indaga se há sexo no futebol, e ouve que não; indaga então se há violência, e ouve que eventualmente, mas quando acontece é punida. Convencido, o Dalai Lama consente e, pela primeira vez na história do país, os monges podem assistir a um jogo de futebol.
Deixando o improvável tópico do sexo pra lá, lembrei da cena por causa da referência à violência. Lembrança que me conduziu a minhas leituras shakespearianas. Foi assim:
Meados dos anos setenta eu estava, pela primeira vez, lendo o “Rei Lear” (1605) de Shakespeare quando me deparei com o que menos esperava: futebol.
Futebol no século XVI? Como podia? Li e reli o trecho para me certificar. Não havia dúvidas, até porque a versão da peça que eu lia era no original, e o termo era aquele mesmo: football.
O trecho que eu lia era uma daquelas cenas violentas da peça em que o personagem de Kent insultava Oswald, o empregado de Goneril, uma das filhas do rei. E o fazia com uma série de palavras grosseiras - uma longa lista de termos baixos, ofensivos, e no fim da linha, o mais ofensivo de todos era: “seu jogador de futebol!”.
Com o mesmo sentido de jogo sujo e baixo, mais tarde achei uma outra referência ao futebol em Shakespeare, agora em “A comédia dos erros”, quando o servente Drômio reclama de seus patrões por estar sendo tratado com desdém e maus tratos, inferiorizado como se fosse ele “um vil jogador de futebol”.
Como todo mundo, eu achava que o futebol fosse uma distinta e sofisticada invenção inglesa do século XIX.
Fui pesquisar e descobri que, de fato, os ingleses haviam inventado as regras do futebol no século XIX, mas só as regras, pois o jogo mesmo existia de muito tempo – praticamente desde a Idade Média - e sem regra nenhuma.
No tempo de Shakespeare era um jogo grosseiro, baixo, extremamente violento e mesmo letal.
Era disputado entre as aldeias e a prática era derrubar, ou se fosse o caso, aniquilar os adversários a todo custo. A bola era feita da bexiga do porco e para metê-la na trave do adversário valia tudo, soco, puxão, empurrão, pontapé, tapa, espancamento, o que desse e viesse. Como não havia limite para o número de jogadores, podiam participar grupos enormes de pessoas, em alguns casos, multidões que se digladiavam, e era comum que tudo terminasse em muito sangue e até mortes.
Segundo registros da época, o futebol matava mais que os duelos, ou as lutas livres, ou a prática do arco e flecha. Sua grosseria, baixeza e sanguinolência só eram comparadas ao “bear bating”, aquele esporte horrendo em que, em praça pública, uma multidão munida de ferrões pontiagudos, se divertia, às gargalhadas, espetando um urso até a morte.
Ao longo dos séculos houve, no Reino Unido, várias sugestões parlamentares para a extinção desse jogo infame que era o futebol. Até que lá pelos meados de século XIX, as autoridades britânicas encontraram uma solução para a questão: criaram e aprovaram por lei as rigorosas regras do jogo que conhecemos até hoje, jogo que, ironicamente, se tornou, como se sabe, o mais belo, o mais elegante e o mais amado dos esportes.
Tudo bem, às vezes, em campo e/ou fora de campo, ocorrem pancadarias e agressões, mas nada que se compare à sanguinolência que Shakespeare conheceu.
De modo que até o Dalai Lama poderia hoje, se quisesse, assistir, sem perder sua pureza de espírito, a uma boa partida de futebol.




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